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Sexta-feira, 16/11/2007
O engano do homem que matou Lennon
Tais Laporta

Jurado de morte na prisão, Mark David Chapman recusa a liberdade condicional. É ele o autor do disparo que matou o ex-Beatle John Lennon, em 1980. Nas mãos do assassino, um exemplar de O apanhador no campo de centeio (Editora do Autor, 1999, 208 págs.; The catcher in the rye, em inglês), de J. D. Salinger. Teria sido o personagem do livro - segundo ele - que inspirou-lhe a cometer o crime. "Grande parte de mim é Holden Caulfield. Outra parte deve ser o demônio", contou à polícia. Apesar de Chapman ter culpado parte do romance pelo sangue derramado, a rebeldia inaugurada na narrativa de Salinger está longe de estimular a barbárie.

Logo após a morte de Lennon, as vendas do clássico dispararam, até firmar-se como best-seller e leitura obrigatória. Todo mundo queria saber quem era Holden Caulfield. O que tinha de tão curioso a ponto de inspirar um assassino? O personagem é um simples adolescente de 17 anos, recém-expulso do colégio por mau desempenho. É depressivo, mente e sofre com a própria instabilidade emocional. Tão inocente quanto as brigas nas quais se envolve. Alimenta afetos e ódios, entre picos e quedas. Não tem sonhos concretos, nem planos para o futuro. Apenas vontades passageiras. Tudo o deprime - estado que alimenta ainda mais sua rebeldia.

Nada em Caulfield inspira admiração, embora sua marginalidade não seja gratuita. No seu perfil desajustado, gerações de jovens continuam encontrando um espelho. Participam de sua angústia e criam coragem para assumir a própria impulsividade. Até os anos 1950, ser imaturo era sinônimo de fraqueza. O poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891) escreveu que ninguém é sério aos 17 anos. Lá pela década de 1920, uma criança passava a ser adulta quando ganhava a primeira calça comprida, geralmente no Natal. Era motivo de orgulho, para o presenteado, deixar de ser um "tolo inexperiente" para cair no mundo como alguém de verdade. Largava a escola para trabalhar, aos 14 anos - no rastro da Revolução Industrial -, pronto para casar-se e formar uma família. Num salto olímpico, pulava totalmente a transição da infância para a fase adulta. Em vez de viver a adolescência, se deparava com a pura responsabilidade.

Mas a necessidade de formar adultos precoces perdeu o sentido após a Segunda Guerra. Com o despontar do capital intelectual, os jovens puderam prolongar os estudos, sem precisar trabalhar. Lá estavam eles, com barba feita, ocupados com festas e garotas. Nada de pressões sociais. Tudo o que queriam era uma Coca-Cola com whisky: aqui e agora. Mas o comportamento imaturo ainda não tinha crédito na sociedade - quanto menos na literatura, a porta-voz da experiência. Caulfield vem para legitimar a rebeldia adolescente, intolerada pelas comunidades "crescidas". Ocupou o vazio de identidade do começo do século XX, junto de ídolos como Elvis Presley. Música, moda e tribos urbanas passaram a ser instrumentos de auto-afirmação. Assim, a juventude ganhou o respeito adulto, oportunidade para que O apanhador no campo de centeio fosse compreendido.

Salinger, ao escrever, não imaginava o estrondoso sucesso que viria. Se soubesse, talvez não tivesse sido capaz de criar um romance tão despretencioso e modestamente banal. Até porque levou uma vida semelhante à de seu personagem, anti-social. A narração em primeira pessoa é repleta de gírias e expressões jovens. Fatos triviais e divagações seguem sem respiro. É assim que o personagem vomita sua inocência. Embora transcorrido nos anos 50, o romance parece não ter época. Poderia ser adaptado, tranqüilamente, para qualquer década posterior. A ausência de sinais do passado, exceto por uma máquina de escrever, evidencia que o romance não envelheceu, como ocorre com os clássicos estabelecidos.

Embora seja um hino da revolta juvenil, O apanhador no campo de centeio também é lido por marmanjos. Não é preciso ser jovem para identificar-se com o anti-herói, rebelado contra a sociedade. Prova disso é que o cinema e a própria literatura criaram Caulfields mais velhos - e igualmente intempestivos. O personagem de O Náufrago, de Thomas Bernhard, chega à ruína interior ao deparar-se com um gênio do piano, Glenn Gould. Estar abaixo dele já é motivo para sentir-se um acidente de percurso. Na sétima arte, Stanley Kubrick repetiu a saga do homem rebelado. As obras-primas Laranja Mecânica, O Iluminado e Barry Lindon recriam escórias humanas.

Em nenhum momento, contudo, o livro de Salinger faz apologia à violência ou ao ódio. O cartão-verde para a rebeldia não justifica qualquer crime, ao contrário do que entendeu o assassino de Lennon. Ele levou ao pé da letra as revoltas passageiras do personagem, das quais o próprio se arrependeria. Ao contrário do criminoso, Caulfield não sofria de esquizofrenia e doença mental. Chapman teria se inspirado em qualquer símbolo da incompreensão jovem para justificar seus demônios.

Além disso, o personagem encontra os primeiros sinais do equilíbrio no amor pela irmã caçula, Phoebe. Quando ela lhe instiga a pensar no que gostaria de fazer no futuro, Caulfield se imagina observando crianças brincarem em um campo de centeio, atento para apanhá-las antes que caiam em um abismo. É o que deseja ser. Um trecho do livro reflete esse ritual de passagem: "O homem imaturo é aquele que quer morrer gloriosamente por uma causa. O maduro contenta-se em viver humildemente por ela".

Desponta, aí, o senso de proteção que o faz desistir de qualquer maluquice. Seu planos de fuga eterna vão por água abaixo, diante de uma criança que o imita. Alguém precisa tomar as rédeas da loucura, sentir-se responsável pela ordem. E precisa ser ele. Nasce um novo Caulfield, feliz e sereno. Mesmo indiferente sobre o futuro, longe das pressões da fase pré-adulta: ganhar dinheiro e escolher uma profissão. Certamente, Caulfield tardaria para definir-se socialmente. Mas, por outro lado, estaria longe de tornar-se um médico frustrado ou um advogado anti-ético. Ambos, produtos precoces da modernidade.

Para ir além





Tais Laporta
São Paulo, 16/11/2007

 

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