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Terça-feira, 18/12/2007
Algumas leituras marcantes de 2007
Luis Eduardo Matta

A exemplo do que fiz no final de 2006, venho, nesta última coluna do ano, repartir com os leitores do Digestivo Cultural um pouco das minhas incursões pela literatura em 2007. Este foi um ano bastante diversificado em termos de leitura, onde arrisquei mais e, também ― talvez por conta disso, talvez não ―, me decepcionei mais. Ainda assim, no geral, o saldo foi positivo. Ao todo, foram 54 livros lidos e três, de tão indigestos que eram, apenas parcialmente lidos. Devo esclarecer, porém, que muitos dos ótimos livros que embalaram minhas horas de leitura em 2007 não constam desta lista. Entre eles estão praticamente todos sobre os quais comentei ao longo do ano, cujas resenhas vocês podem conferir nos arquivos do Digestivo Cultural, além de outros, como o novo e imperdível romance de Zé Rodrix, que encerra a excepcional Trilogia do Templo: Esquin de Floyrac: o fim do Templo (Record, 2007, 658 págs.) cuja orelha, inclusive, tive a honra e a alegria de escrever.

Quero dizer, igualmente, que a relação abaixo não está organizada por ordem de importância. Gostei de todos esses sete livros da mesma maneira e, se os dispus numa lista vertical, foi porque ainda não inventaram uma forma legível de sobrepô-los na mesma posição. O ecletismo desta listagem, que muitos poderão estranhar ou mesmo torcer o nariz, reflete o meu próprio ecletismo como um leitor sem preconceitos e aberto a todos os segmentos da criação literária. Por isso mesmo, leitores de diversos perfis poderão se beneficiar dela, ainda que eu não a tenha elaborado com a intenção deliberada de atingir múltiplos públicos a um só tempo.

* Reparação, de Ian McEwan (Companhia das Letras, 2002, 448 págs.) ― Sem dúvida alguma, uma grande obra literária, em todos os sentidos. Reparação é daqueles livros que parecem penetrar fundo na nossa alma e revolvê-la, forçando-nos a questionar nossas próprias certezas e percepções. Magistralmente construído, como somente um gênio literário é capaz, Reparação começa no dia mais quente do verão de 1935, numa mansão no interior da Inglaterra. Briony Tallis, uma jovem de 13 anos com ambições de se tornar escritora, presencia, inadvertidamente, uma cena entre Cecilia, sua irmã mais velha e Robbie, o filho de uma empregada da família, e apadrinhado, desde sempre, pelo pai das duas, um alto funcionário do governo britânico: Cecilia e Robbie estão junto a uma fonte nos jardins da casa quando a moça se despe, permanecendo apenas com as roupas de baixo, e imerge na água a fim de apanhar os pedaços de um vaso de porcelana que se havia quebrado na borda. A partir daquele momento, a imaginação fértil da jovem Briony, conjugada com a própria materialização urgente da forte atração amorosa existente entre Cecilia e Robbie, amigos de infância e hoje adultos, a levará a cometer uma infame injustiça ― o "crime", na definição dela própria ―, que afetará terrivelmente sua vida para sempre. O final do livro é desconcertante e surpreendente e, ainda que eu quisesse, não poderia revelá-lo aqui porque há que ler o livro inteiro para sentir o seu impacto e captar o seu significado, que vai muito além da trama e acaba por fazer uma reflexão preciosa sobre a própria literatura.

* O eco distante, de Val McDermid (Bertrand Brasil, 2007, 462 págs.) ― Val McDermid é, a meu juízo, a melhor revelação da literatura policial aparecida nas livrarias brasileiras nos últimos anos. E observem que esta é a opinião de um contumaz e um tanto exigente leitor de obras policiais e de mistério. Esta notável escritora escocesa figurou, há um ano, na minha relação de leituras marcantes de 2006, com o excelente Um corpo para o crime. Quando bati os olhos na capa de O eco distante, seu segundo título lançado no Brasil, cheguei a recear, a princípio, que McDermid não teria a mesma maestria para sustentar uma narrativa onde predominasse o clima opressivo, denso e instigante de drama psicológico, tensão e mistério de sua obra anterior, mas logo nas primeiras páginas me dei conta, felizmente, de que estava enganado. O eco distante é sensacional e, se não se iguala a Um corpo para o crime, é porque o supera. A trama tem início numa madrugada gelada de dezembro de 1978, numa localidade do interior da Escócia, quando quatro jovens estudantes ― Alex (Gilly), Sigmund (Ziggy), Davey (Mondo) e Tom (Esquisito) ― ao voltarem, alcoolizados, de uma noitada, encontram, ao acaso, um corpo jogado sobre a neve num antigo cemitério picto. A vítima era Rosie Duff, a linda e cobiçada garçonete de um badalado pub local, que havia sido violentada, mutilada e assassinada naquela mesma madrugada. Os rapazes, imediatamente, tornam-se os principais suspeitos do crime e tentam provar sua inocência a uma polícia letárgica que, diante da falta de provas, logo se mostra incapaz de solucionar o caso, que acaba arquivado. Vinte e cinco anos depois, no entanto, os formidáveis avanços tecnológicos e científicos das investigações criminais, inexistentes em 1978, fazem com que o caso seja reaberto. Os quatro amigos, agora adultos, permanecem como os únicos suspeitos e, quando dois deles são misteriosamente assassinados em seqüência, os dois sobreviventes percebem que a única forma de salvar a própria pele é descobrir quem, afinal, matou Rosie Duff vinte e cinco anos atrás. O eco distante é um romance para leitores com nervos e fôlego de aço. Os aficionados por literatura policial não irão se arrepender. E os que já são leitores de Val McDermid podem começar a se preparar, pois a editora Bertrand Brasil, promete para 2008, a publicação de mais um policial seu, cujo título original em inglês é The grave tatoo.

* Era no tempo do rei, de Ruy Castro (Alfaguara, 2007, 248 págs.) ― Quando eu estava prestes a fechar essa coluna e cadastrá-la para publicação, eis que me chega às mãos o romance Era no tempo do rei, o mais novo trabalho de Ruy Castro. Como, por uma razão qualquer que nada tem a ver com superstição, eu tenho escolhido sempre sete livros para o balanço de fim de ano das minhas melhores leituras, fui obrigado a sacrificar uma outra obra que já constava da lista com loas e adjetivos os mais eloqüentes, para colocar no lugar o romance de Castro, para mim, a grande revelação literária deste fim de ano. "Era no tempo do rei" é a frase de abertura de Memórias de um sargento de milícias, um dos mais extraordinários romances da literatura brasileira, e sua escolha não se deu por acaso, visto que Leonardo, o protagonista do clássico de Manuel Antônio de Almeida, é um dos personagens principais da trama de Ruy Castro, ao lado de ninguém menos do que o jovem príncipe D. Pedro de Alcântara, futuro imperador D. Pedro I. Esse inusitado encontro que acaba resultando numa amizade entre os dois garotos, ambos, então, com 12 anos de idade, se dá no efervescente Rio de Janeiro de 1810, dois anos depois, portanto, da chegada da família real portuguesa ao Brasil. Mesclando ficção e realidade com uma competência inacreditável, a ponto de pessoas que, de fato, existiram, como a prostituta Bárbara dos Prazeres parecerem fictícias de tão extravagantes, e personagens imortalizados pela literatura como o próprio Leonardo soarem reais, Ruy Castro construiu um romance inteligente, divertido, ágil, sarcástico, agradável e ― por que não? ― informativo, uma vez que nos transporta para a intimidade das ruas de um Rio de Janeiro distante no tempo, num momento decisivo da sua história que é, também, a história do Brasil.

* Desonra, de J. M. Coetzee (Companhia das Letras, 2000, 248 págs.) ― Descobri a obra de John Maxwell Coetzee ― escritor sul-africano, vencedor por duas vezes do Booker Prize, o prêmio literário de maior prestígio no Reino Unido, além do Nobel de Literatura de 2003 ― por intermédio do meu amigo Fabio Silvestre Cardoso, leitor de primeiríssima estirpe, e em cuja opinião, sempre pragmática e ponderada, confio inteiramente. Durante pouco menos de quarenta dias, entre agosto e setembro passados, empreendi uma espécie de "Maratona Coetzee", quando me dediquei exclusivamente a ler alguns dos seus livros, cinco no total. De todos, o que mais me encantou foi, de longe, Desonra, um romance que aborda as transformações sofridas pela África do Sul pós-Apartheid a partir das vivências de David Lurie, professor de uma universidade na Cidade do Cabo. Lurie, um intelectual de meia-idade, branco e solitário, leva uma vida metódica, pontuada por encontros regulares e burocráticos com uma prostituta, de codinome Soraya. Numa manhã de domingo, Lurie encontra Soraya casualmente, fora do ambiente onde ela o atendia uma vez por semana, às voltas com sua vida privada e ela o repele, cortando para sempre qualquer contato, ainda que meramente profissional, entre os dois. Isso abala de tal maneira a rotina confortável e esquemática à qual Lurie se confinara, que ele vê os rumos da própria vida se alterar drasticamente. Ao se envolver com uma de suas jovens alunas na universidade, Lurie cai publicamente em desgraça e afasta-se da vida acadêmica, indo se refugiar na propriedade rural onde vive sua única filha. Lá, ele acaba se defrontando com a sórdida e violenta realidade da "verdadeira" África do Sul, aquela distante das suas salas de aula e do frágil mundo que construíra para si, uma realidade avassaladora e inevitável, com a qual há que se conformar e onde predominam a dureza e a desesperança. Na prosa límpida, crua, seca, precisa, com pátinas um tanto melancólicas e soturnas, que lhe é característica, Coetzee criou uma história deslumbrante que, mais do que narrar as angústias de um homem e de um país, traça ― como bem frisou Fabio Silvestre Cardoso numa resenha sobre o livro publicada em 2004 ― um fiel retrato da condição humana.

* Paixões perigosas, de Barbara Delinsky (Bertrand Brasil, 2007, 518 págs.) ― Do mesmo modo que Val McDermid, a escritora norte-americana Barbara Delinsky também foi mencionada na lista das minhas melhores leituras de 2006 com o comovente O lugar de uma mulher. E assim como McDermid, Delinsky brindou-me, em 2007, com mais uma leitura arrebatadora, provavelmente um dos seus livros mais bem realizados e mais marcantes. Paixões perigosas é a história de Chelsea Kane, uma melancólica arquiteta de 36 anos, bem-sucedida nos negócios e frustrada nas relações afetivas, que depois da morte de sua mãe adotiva, decide descobrir quem são seus verdadeiros pais. Ela acaba indo parar na sua suposta cidade natal, Norwich Notch, um vilarejo afastado que, apesar do aspecto bucólico e gracioso, possui uma faceta sombria que parece ocultar muitos segredos. Ao se misturar ao cotidiano de Norwich Notch e à vida dos seus habitantes, Chelsea vai, aos poucos, ligando os fatos que remetem às suas origens, ao mesmo tempo em que eventos perturbadores começam a acontecer numa evidente tentativa de intimidá-la e forçá-la a ir embora. Enquanto prossegue na sua busca, Chelsea encontra um sentido para a própria vida, descobre o amor, a maternidade e, ao se reconciliar com o passado, a capacidade de compreender e de perdoar.

* Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez ― edição comemorativa (Alfaguara, 2007, 616 págs.) ― Em 20 de junho de 2007, estive no Instituto Cervantes de São Paulo, para o lançamento da belíssima edição especial desta obra-prima do romance universal que é Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura de 1982. O evento contou com a participação de Nélida Piñon e Eric Nepomuceno, que proferiram discursos, e de diversos diplomatas ibero-americanos, incluindo a embaixatriz da Espanha e os embaixadores da Colômbia. Na platéia, entre outros, a escritora Lygia Fagundes Telles, o cineasta Júlio Lellis e este que vos escreve, além de uma moça linda, esbelta e de longos cabelos ruivos, provavelmente espanhola, que se sentou à minha frente no auditório e cujo nome, para a minha infelicidade, não consegui descobrir, uma vez que eu tinha hora marcada num jantar naquela mesma noite e, atrasadíssimo como de hábito, precisei sair às pressas do instituto, após o término da cerimônia.

Mas voltando ao livro: apesar de esta haver sido uma releitura de Cem anos de solidão, considero-a, de certo modo, como uma leitura inédita, já que foi a primeira vez que li o romance no original, em espanhol. A edição comemorativa, promovida pela Real Academia Española e pela Asociación de Academias de la Lengua Española, e lançada internacionalmente pela Alfaguara espanhola, celebra os quarenta anos de publicação da primeira edição de Cem anos de solidão, ocorrida em junho de 1967, pela Editorial Sudamericana, de Buenos Aires e conta com prólogos, entre outros, de escritores como Mario Vargas Llosa, Álvaro Mutis e Carlos Fuentes. Cem anos de solidão narra a saga fantástica (em todas as acepções que esta palavra evoca) de sete gerações da dinastia Buendía, no fictício e remoto vilarejo de Macondo, uma família nascida da união incestuosa dos primos José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán e que, por meio de sua trajetória que se funde com a da própria Macondo, acaba por compor uma alegoria da América Latina e, por conseguinte, da própria condição humana e dos mitos mais fundacionais do nosso imaginário civilizatório.

Não há como fazer um resumo decente de uma obra literária tão completa, múltipla e complexa nesse espaço exíguo; para tanto, seriam necessárias três colunas do tamanho desta ou mais. Cem anos de solidão é o que podemos chamar de um romance total, que permite infindáveis interpretações e leituras as mais diversas, embora sempre marcantes e inesquecíveis. Em 2008, pretendo lê-lo mais uma vez.

* Jane precisa de ajuda, de Joy Fielding (Rocco, 1994, 376 págs.) ― Não existe adjetivo suficientemente elogioso e entusiasmado na língua portuguesa para qualificar esse arrepiante thriller, publicado em 1994 no Brasil e que ― não consigo me conformar ―, somente agora, treze anos depois, tive a grata oportunidade de ler. Jane precisa de ajuda é daqueles livros irretocáveis, daqueles em que um autor ou crítico experiente, ao lê-lo, não mexeria numa única vírgula. O livro, que precisaria piorar bastante para ficar excelente, me foi entusiasticamente recomendado por uma grande amiga, a livreira Ana Klajman, e me custou algumas noites mal-dormidas, pois me era quase impossível desgrudar da leitura. O livro começa de forma inusitada e, já na primeira página, a trama nos seqüestra: Jane Whittaker, a protagonista, se vê, em pleno dia, numa rua no Centro de Boston, com a roupa manchada de sangue, dez mil dólares em espécie nos bolsos e totalmente sem memória. A única coisa de que se recorda é a de que precisava comprar ingredientes para fazer um bolo de chocolate. Não lembra o próprio nome, não sabe onde mora, se é casada ou solteira, se tem filhos, qual a sua profissão. No entanto, o sangue na roupa e os dólares sugerem que algo de terrível lhe acontecera muito recentemente. O enredo que se desenvolve a partir daí é eletrizante. Jane acaba sendo identificada como a esposa de um pediatra conceituado da cidade, que a leva para casa e a trata carinhosamente. Esforçando-se para manter a lucidez em meio à forte medicação que é obrigada a tomar, Jane tenta descobrir o que a teria feito perder a memória daquela maneira, enquanto, aos poucos, percebe que coisas estranhas estão acontecendo ao seu redor. A partir de dado momento, a trama acelera numa tensão vertiginosa, fazendo de Jane precisa de ajuda uma pérola do thriller contemporâneo. Infelizmente, o livro encontra-se esgotado na maioria das livrarias há anos e encontrá-lo num sebo me custou semanas de um périplo extenuante. Atenção, Editora Rocco: está mais do que na hora de rodar uma nova edição.

Um adendo

Para não dizerem que só falei de flores, 2007 foi, também, um ano de leituras enfadonhas e algumas decepções. Dentre essas últimas, duas se destacaram: O afegão, de Frederick Forsyth (Record, 2007, 384 págs.), e Juventude, de J. M. Coetzee (Companhia das Letras, 2005, 192 págs.). Forsyth errou a mão feio neste livro, cuja primeira parte se arrasta burocraticamente numa explanação tão detalhada sobre a história recente do Afeganistão e do surgimento e consolidação do Talibã que, em dado momento, tem-se a impressão de se estar lendo um soporífero livro de História. A própria trama do livro, desinteressante e previsível, não chega nem perto de se igualar à maioria das obras anteriores deste que é um dos mais importantes escritores de thrillers de espionagem do mundo. Basta dizer que o "herói" de O afegão é o mesmo de um outro thriller de Forsyth, O punho de Deus, também ambientado no Oriente Médio (no caso, o Iraque): o oficial britânico Mike Martin, um personagem tão canastrão e sem graça que, em O punho de Deus, conseguiu a proeza de fazer com que eu e muitos outros leitores torcêssemos por Saddam Hussein e seus correligionários o tempo todo.

Quanto a Juventude, pesa bastante o fato de eu não ser especialmente fã de romances de formação. Segundo me confidenciou Julio Daio Borges certa vez, este é um livro que suscita reações extremadas nos leitores. Uns o adoram e outros o detestam. No meu caso, não aconteceu nem uma coisa, nem outra. Achei-o chato e arrastado, mas não cheguei a detestá-lo, tanto que o li heroicamente até o final. John, o jovem protagonista de Juventude, um estudante sul-africano que se muda para Londres com o intuito de se tornar escritor, é um dos personagens mais insípidos com o qual tive contato este ano. Não sei se ele é um alter ego de Coetzee, cujo primeiro nome também é John, e há quem afirme, como Rafael Rodrigues, que essa insipidez foi proposital, o que não chega a atenuar a minha impressão. Os fãs do livro podem me apedrejar, mas, antes, digo-lhes que, como não sou crítico, esta é a opinião simplória de um leitor comum e, por conta disso, carregada de uma subjetividade transbordante. Do mesmo modo, Juventude não abalou em absoluto o meu alto conceito em relação à obra de J. M. Coetzee, assim como O afegão não diminuiu minha admiração pela obra de Frederick Forsyth. Afinal, nenhum gênio literário precisa ser genial sempre e toda obra artística, o que não inclui apenas a literatura, ao se tornar pública, está sujeita a toda sorte de interpretações e reações. Assim é a arte. Assim é a vida.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 18/12/2007

 

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