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Sexta-feira, 4/1/2008
O que aprender com Ian McEwan
Tais Laporta

Quando lançado no Brasil, Reparação (Companhia das Letras, 2002, 448 págs.), do aclamado Ian McEwan, recebeu chuvas de elogios. No resto do mundo, também. Agora, a expectativa fica por conta da adaptação cinematográfica, que já esteve aqui pela 31ª Mostra Internacional de Cinema, em outubro último, mas só chega oficialmente em fevereiro de 2008. Sem questionar a fidelidade do filme de Joe Wright para com o romance ― segundo quem assistiu, segue à risca ― interessa destacar a grandeza do livro.

Como escreveu a The Economist, a palavra "obra-prima" deve ser usada pela crítica com absoluta ressalva. Mas no caso de Reparação, o sinal está aberto para o uso. Trata-se não apenas de um dos melhores romances de McEwan ― autor badalado na literatura mundial ― mas de um denso e refinado mergulho sobre o papel da arte e sobre o peso da culpa humana. O livro reflete, portanto, a eterna tentativa do homem de expiar seus erros ― daí o título, em inglês, Atonement, que significa expiação. Também questiona a função moral da literatura nessa busca incansável. A propósito, o escritor e colunista do Digestivo, Luís Eduardo Matta, colocou Reparação como uma de suas grandes leituras em 2007.

O drama psicológico traz a aspirante a escritora Briony Tallis, uma pré-adolescente que passará o resto da vida na tentativa de desfazer um crime cometido por ela, cujas causas abalariam profundamente sua família. Sem lugar para o perdão ― talvez perdido para sempre ― Briony parte para uma espécie de penitência para reparar seu erro, como se a compaixão pelo outro só pudesse se materializar na auto-punição. McEwan cria uma personagem imatura, prestes a descobrir a sexualidade e o amor. Por meio de sua mente introspectiva, porém, conhecemos uma pessoa autêntica, na luta para ordenar o caos através da literatura.

Ao retratar a infância de Briony, o autor joga um olhar adulto sobre o mundo infantil, sem subestimá-lo ou inferiorizá-lo. Cenários banais a olho nu tornam-se foco de intrigas universais. McEwan constrói uma sólida rede de relações entre os personagens, mesclando descrições físicas e comportamentos, com um rigor incansável. Invade a mente de cada personagem, em contato com seus medos mais profundos, inclusive os ignorados pelos próprios. Sem perder o estilo inigualável, provoca um desejo de leitura ininterrupta. Cada parágrafo merece doses certas de suspense, drama e comédia. Assim, oferece elementos, nem um pouco exaustivos, para uma trama complexa.

É indiscutível sua capacidade em atribuir carga emocional ao mais banal detalhe. Quando escrito por McEwan, o enfadonho é envolvente, a ponto de obrigar o leitor a reagir. O jornal inglês The Guardian ilustra essa habilidade. Quando o autor escreve "um copo de cerveja", não apenas o visualizamos. Segundo o periódico, "estamos prontos a bebê-lo". A intensidade de narrativa faz parecer verossímil um fato inventado ― a ponto de surgir a dúvida se aquilo aconteceu mesmo. Algo de Jorge Luis Borges, em seus contos realistas, mas fantásticos.

Os devaneios dos personagens também levam a uma mistura de realidade e sonhos, muitas vezes indissociável pela mente. Quando descreve um combate em plena Segunda Guerra, dispensa lugares comuns, de modo a se aproximar de Ernest Hemingway em Por quem os sinos dobram, clássico que transforma a Guerra Civil Espanhola em literatura. Com a diferença de que McEwan nasceria 13 anos depois da época em que começa seu romance, em 1935. Mostra-se, portanto, um historiador cuidadoso, já que escreve fora de seu tempo com um rigor de impressionar os mais exigentes.

Se o autor já era digno de atenção pelos trabalhos anteriores (A criança no tempo, O jardim de cimento, Amor para sempre e Amsterdam), e se já não bastavam os merecidos Whitbread Award (1987) e Booker Prize (1998), em Reparação ele passa a ser comparado, em grandeza, a Henry James (cujas semelhanças do romance com Pelos olhos de Maisse foram apontadas por diversos críticos). Também foi posto à altura de Franz Kafka, devido ao teor sombrio da narrativa. Apesar das semelhanças com os grandes, não perde a identidade.

Por retratar histórias mórbidas com tanta frieza, o autor chegou a receber a alcunha de "Ian McCabro" pela crítica inglesa. Em Reparação, não perde esse toque horripilante ao descrever uma perna de criança pendurada em árvore, separada do corpo por uma bomba. Apesar da distância que mede para passar por situações chocantes com algum conforto, McEwan preserva o sentido humanitário até mesmo no horror. O cruel fica ao lado do doce. Universos tão distintos ― brincadeiras de criança e guerras com cheiro de morte ― recebem igual densidade, e igual distanciamento quando necessário. É proposital para uma leitura segura, na confiança de que o autor sabe onde pisa ― e onde o leitor pode pisar.

Quem vê McEwan como um homem fortemente enraizado na literatura, pode se surpreender ao saber que um dos autores que mais influenciaram sua obra não é um escritor, porém o biólogo Edward Wilson, autor de The diversity of life, que faz uma análise da relação do homem com a biodiversidade. A riqueza literária do escritor, desse modo, ganha amparo na cultura geral, mais que em outros romances. Embora reflita sobre a alma, medos e relacionamentos, McEwan é um ateu materialista, como definiu a si mesmo. Talvez seja o ceticismo que o faça percorrer tantos saberes com o mesmo objetivo: fazer uma literatura universal.

Para ir além





Tais Laporta
São Paulo, 4/1/2008

 

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