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Terça-feira, 22/1/2008
Por que Coetzee
Daniel Lopes

Ainda em dezembro, meu amigo Marcelo "Pede-Carona" veio aqui em casa em busca de uns livros para preencher suas férias. Quis levar um do Sabato, mas eu não deixei, disse que Sabato já havia me dado muita dor de cabeça, por culpa do mesmo sujeito que certa vez deixou um meu Dostoiévski pegar banho de chuva, e não há nada mais revoltante, eu disse ao Marcelo, do que você perder um livro para a chuva em Teresina. Ele acabou levando um John Updike e uma Zadie Smith, dois escritores que eu desgosto profundamente.

Mas não passou despercebida a Marcelo a pérola da coroa da minha estante ― a série de livros de J. M. Coetzee, em edições paperback de design lindo da Penguin. "Por que tu gosta tanto dele?", perguntou meu colega. Pensei e disse, "Incrível, mas não saberia te dar uma resposta. Não agora. Talvez depois, pensando melhor, eu te diga algo".

Dei-me conta, então, que até o momento Coetzee vinha sendo, e acho que sempre será, meu autor preferido por razões cujo conhecimento me escapava. Como acontece, aliás, com várias das coisas de que mais gostamos, ou pessoas.

Mas, mas, mas... Por que mesmo eu gosto tanto de Coetzee? Vou citar os primeiros motivos que vierem à mente, e me estender um pouco sobre eles. Apenas os primeiros (porque com certeza há muitos outros) e me estendo pouco senão isto aqui não será uma coluna, mas um livro.

O sedutor jogo com as palavras
John Maxwell Coetzee ― nascido na África do Sul em 1940, hoje cidadão australiano ― é uma bela justificativa para meu apaixonado convite para lermos, sempre que possível, os textos originais. É que, não bastassem as versões brasileiras serem sempre mais caras, os originais são... os originais, ora!

Veja que o primeiro romance de Coetzee, Dusklands (1974), foi traduzido no Brasil (há muitos anos atrás, pela Best Seller, já esgotou a edição) como Terras de sombras. Vá lá. Mas lembre que o livro se chama Dusklands, e não meramente "Shadowlands". Aí você vai no Oxford e vê que ― enquanto shadow quer dizer sombra (trevas, se vier no plural; e muito raramente, indistinto, sentido figurado) ―, dusk por sua vez remete, antes de mais nada, a crepúsculo! Tá, tá, de sombra até crepúsculo a diferença não é a mesma que de frei de caminhão para Frei Damião, mas existe. Em português, o tradutor, em tarefa inglória, não pôde mostrar essa diferença em seu título.

E olha que isso é "só" um título. Abismal é a diferença de se ler uma obra inteira de Coetzee no inglês e em uma tradução ― que, por melhor que seja, será uma tradução e nada mais. É que o autor adota muitas vezes uma prosa hesitante, quebrada, que não pode ser compreendida e fruída inteiramente senão no original. Antes de ler Disgrace (1999), li a versão da Cia. das Letras, Desonra. É nota 10, Desonra. Mas Disgrace é 12.

Há uma passagem logo nas primeiras páginas de Age of iron (de 1990, e que, junto com Disgrace e Waiting for the barbarians, de 1980, é meu livro favorito de Coetzee) que não vejo como poderia arrepiar alguém se não estando assim em inglês, principalmente a parte em negrito. Talvez eu seja apenas um cara estranho, mas vamos lá.

Corren, a narradora que mora sozinha numa casa da Cidade do Cabo enquanto é consumida por um câncer e lamenta a filha que se foi para os EUA, dá um "sermão" a Vercueil, um indigente que certo dia aparece em sua garagem e, por inércia, torna-se um inquilino e uma companhia com quem Corren tem longas conversas:

"'You told me', I said, 'that I should turn this house into a boarding house for students. Well, there are better things I could do with it. I could turn it into a haven for beggars. I could run a soup kitchen and a dormitory. But I don't. Why not? Because the spirit of charity has perished in this country. Because those who accept charity despise it, while those who give give with a despairing heart. What is the point of charity when it does not go from heart to heart? What do you think charity is? Soup? Money? Charity: from the latin word for the heart. It is as hard to receive as to give. It takes as much effort. I wish you would learn that. I wish you would learn something instead of just lying around.'

A lie: charity, caritas, has nothing to do with the heart. But what does it matter if my sermons rest on false etymologies? He barely listens when I speak to him. Perhaps, despite those keen bird-eyes, he is more befuddled with drink than I know. Or perhaps, finally, he does not care. Care: the true root of charity. I look for him to care, and he does not. Because he is beyond caring. Beyond caring and beyond care."

Não tenho dúvidas de que essa maneira ótima de tratar o texto, o que amplifica no leitor o impacto do tema em questão no romance (ou no ensaio), foi fator decisivo para o escritor ganhar o Nobel em 2003 ― de fato, o comitê reconheceu sua "composição bem elaborada".

O ativismo
Nosso autor em questão é um liberal de esquerda, o que fica explícito em seu livro de ensaios sobre censura reunidos em Giving offense (1997), e mesmo nos ensaios literários de Stranger shores (2002) e Inner workings (2007). Esse posicionamento político, embora não determinante (senão eu seria fã de García Márquez), inegavelmente tem um apelo sobre mim.

Certo, nenhum livro seu é dogmático. Mas a situação social, política e econômica de países está sempre presente ― da África do Sul, Estados Unidos/Vietnã, Austrália, Rússia, Inglaterra (estes dois últimos, em romances históricos: respectivamente, The master of Petersburg e Foe).

Mas, você dirá, mostrar uma realidade não equivale a ativismo. Apenas se o amigo não souber que mostrar também é uma forma de agir, e que doutrinação e intolerância não são os únicos significados de ativismo. Qualquer um que leu Disgrace sabe que Coetzee quis mostrar, junto a fortíssimos e bem retratados dramas individuais, a realidade louca da África do Sul pós-apartheid. Assim como em Age of iron ele mostra a loucura da África do Sul do apartheid.

Mas será que o que importa mais, insistirá você, não são esses dramas pessoais dos personagens? Eu digo que os dramas pessoais não importam nem mais nem menos do que os dramas dos grupos, das comunidades, dos países em que essas individualidades estão inseridas. Estão em pé de igualdade. Se Coetzee tivesse desejado mesmo dar mais ou exclusiva importância aos dramas pessoais (esqueçamos por um instante que eles derivam em grande parte de situações-pressão dos grupos), teria colocado alguns poucos sujeitos trancados em um quarto, contando seus amores e desamores (enquanto esforçam-se para ignorar o ferro e o fogo à sua volta).

Não. Quase que invariavelmente, Coetzee solta seus personagens no olho do furacão, para vermos o que acontece. Por mais que eles lutem, há sempre algo no ambiente que os oprime ― seja o clima inóspito ou o puritanismo exacerbado e hipócrita ou a patriotada ou a violência das armas ou a violência das palavras ou a pobreza material das classes baixas ou a pobreza intelectual e a insensibilidade das classes altas...

É óbvio que os livros de Coetzee não se aproximam de manuais de revolução; pelo contrário, os ideais revolucionários, ou pelo menos os meios que se costumava usar para fazer A Revolução, são duramente postos em cheque em um romance seu, dos melhores que alguém pode ler no curso de uma vida, The master of Petersburg (1994), quando Dostoiévski (Dostoiévski!) volta para a Rússia de seu exílio na Alemanha para investigar a morte do filho, ex-integrante de um dos muitos e violentos grupos niilistas que abundavam na era dos czares.

A proximidade
Estou muito próximo de Coetzee. Geograficamente falando. Digo, na geografia da mente, por intermédio da geografia do planeta. Coetzee está muito próximo de mim. Explico.

Alguém aí terá que escrever, se é que já não escreveram, da maravilha que é sentirmo-nos próximos de um escritor fisicamente muito longe, pelo fato desta pessoa lidar (viver e sentir e criar) com um universo-ambiente que nos é bastante comum, que na verdade é bem aqui em nosso quintal.

In the heart of the country (1977) é talvez a leitura mais difícil de Coetzee. Maçante, dirão alguns, até perceberem que aquela rotina monótona e áspera da narradora-personagem é mesmo o que o autor quis transmitir. Ainda assim, o livro me marcou profundamente. Aquela personagem está no coração da África do Sul, e sobre ele escreve em seu estranho diário: "There is, it seems, no angels in this part of the sky, no God in this part of world. It belongs only to the sun".

Ora, eu vivo nesse lugar!, pensava eu a cada página. Todos os dias eu acordo nele, morro de calor pela manhã, pela tarde e pela noite. Coetzee pode não ter se dado conta, mas quando estava escrevendo aquele livro, oito anos antes de eu nascer, o fazia apenas para mim; não importa que a maioria de seus leitores passem voando pelas páginas de In the heart..., desde que ele tenha mexido profundamente comigo.

Coisas da literatura. Sinto-me mais em casa e mais magnetizado nesse como em outros livros de Coetzee do que, digamos, quando leio um romance urbano de Bernardo Carvalho, ou um dos maravilhosos livros do mineiro carioca Rubem Fonseca. Convidado, eu posso até passear com brilho nos olhos pelos mundos destes dois últimos, mas, em alguns livros seus, Coetzee não precisa me convidar para entrar, porque eu já estou lá.

Mesmo que aquela personagem habite uma casa de campo decadente num povoado quase deserto, e que não saiba se o mundo acaba logo naquelas montanhas que sua vista alcança, ou se ele se estende para além delas, ainda assim eu reafirmo que vivo naquele mundo. Porque, apesar de tudo, Teresina, em grande parte, não passa de um povoado quase deserto e decadente, abrasador, e eu, mesmo com o pouco que conheço (que é pouco, mas é), também não sei se o mundo acaba ou não no horizonte que enxergo ― quero dizer, não sei se, além do horizonte, há algo de novo que possa me surpreender verdadeiramente ou se, apenas, o que vou encontrar é mais do mesmo, e neste caso, digam o que quiserem, o mundo acaba no horizonte (é essa, acredito, a dúvida que perturba a personagem central de In the heart...).

As mulheres
Poucos escritores têm tanta capacidade para produzir personagens femininas tão fortes como Coetzee ― incluídas escritoras de todos os tempos e espaços. Mais do que criá-las, em diversos momentos o criador simplesmente as incorpora e incorpora-se nelas, permitindo-lhes narrarem livros, e fazendo com que sejam o centro de descobertas de uma estória, mesmo quando não estão no centro das atenções.

Penso não somente na Sra. Curren, que narra Age of iron, e em Elizabeth Costello, que dá nome a um romance-ensaio (2003) e volta a aparecer em Slow man (2005) ― ela é um alter-ego do autor, e não sei de nenhum outro que tenha elegido uma mulher para alter-ego. Mas também lembro da prisioneira "bárbara" nas mãos do exército "civilizado" em Waiting for the barbarians, da Susan Barton que confronta o Daniel Defoe reconcebido em Foe (1986), e de Lucy, a filha de David Lurie em Disgrace.

Vem-me à mente, ainda, e num grau diferente, a esposa de Eugene Dawn, o burocrata do exército estadunidense em "Vietnam Project", primeira das duas novelas de Dusklands ― o que sabemos dela é pelo que nos informa seu perturbado marido, exatamente por ela sem dúvida ser o contrário do que ele pinta; a idosa e moribunda mãe de K. em Life & times of Michael K. (1983); a pequenina filha da senhoria de Dostoiévski em The master of Petersburg; e a enfermeira croata de Paul Rayment em Slow man.

São todas pessoas que nunca esquecerei. Até porque estarei sempre as revisitando.

Daniel Lopes
Teresina, 22/1/2008

 

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