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Sexta-feira, 28/3/2008
Introdução à lógica do talento literário
Ana Elisa Ribeiro

Férias. Enfim, o merecido descanso. Uma trabalhadora brasileira, como eu, que nasceu em berço emprestado e cheio de caruncho merece alguns dias de paz ao longo do ano. Os afazeres diários (e são diários mesmo) não dão sossego, mas ao menos acordar mais tarde a gente pode. Alegria de classe média, média baixa, digamos. Mesmo assim deixo o despertador ligado, que é pra não esquecer de que a vidinha continua. Se a sirene não tocar, a gente fica com medo de estar alheia a tudo, além da conta. Despertador ganhado de presente, comprado nas Casas Bahia, não sei. Quê isso? Muito antes das Casas Bahia. Coisa do Ponto Frio ou da Mesbla, talvez. Minha mãe ia muito às Casas Sloper, nem sei. Mas ponho o despertador pra tocar que é pra não esquecer de que o pão é suado.

Férias. Para não obstruir o intestino e aliviar um pouco o peso da cabeçona, resolvi escolher um livro mais levinho pra ler. Nada de educação e novas tecnologias, história da mulher no mundo ocidental ou design gráfico. Nada de política ou sociologia, história ou gestão cultural. Deixei essas coisas pra quando o despertador tocar. Agora quero ler é delícia. Catei logo ali na estante, na menor, um livro da Flora Süssekind publicado pela editora da UFMG. Capinha branca, formato de bolso, um título gostoso: Literatura e vida literária (Editora UFMG, 2004, 162 págs.). Tive a impressão de já tê-lo lido, mas as primeiras páginas me soaram muito estranhas. Eu teria me lembrado da verve daquela professora. O subtítulo: Polêmicas, diários & retratos. O que eu queria mesmo era saber mais sobre literatura contemporânea, mas não é bem isso. Uma literatura que já é história, mas que ainda espalha cuspe por aí. Waly já se foi, Leminski desceu a serra, Ana Cristina desistiu etc. e todo aquele desfile fúnebre, mas Chacal tem blog, Alice perambula pelos festivais e tal e coisa. Por pouco não conheci esses caras de perto. Os amigos deles já estiveram nas mesmas mesas que eu. Fazer o quê?

Flora Süssekind trata das tendências da literatura brasileira novíssima em tempos de ditadura. Se, para alguns, os anos de chumbo eram verdadeiros interlocutores da produção (e dos produtores) literária, para a professora essa era uma faceta (nem sempre a mais fértil e nem a dominante) do mundo da literatura nos idos de 1960-70. O livrinho chega a mencionar a abertura, já na década de 80, quando eu era pré-adolescente.

Nos anos 1990, entrei no meu primeiro concurso literário. Ganhei, vejam só. Impulsionada por um namorado leitor e corajosa como uma águia, encarei a empreitada e vi meu poema estampado na tiragem do jornal de sexta-feira. Um orgulho. Mais importante: a descoberta de que era aquilo mesmo o que eu queria. O gosto de delícia que eu senti me deu umas certezinhas por dentro. Nunca mais me esqueci delas. Naquela época, havia uns tantos concursos. Importantes e com prêmios bons, de fato, não apenas a publicação relativa de um livro que jamais sairia dos arredores da minha sala de estar. Concursos que prometem a publicação de coletâneas são piada, não é mesmo? Livros irregulares, balaio de gatos pardos, tiragens souvenir. Não. Naquela época, eram prêmios em dinheiro, respeitáveis. O Prêmio Nestlé era o preferidinho. Alguns dos meus amigos de hoje têm esse prêmio no currículo. Uma graninha que ajudou a construir a casa. Não a de palavras, a de verdade. O Prêmio Minas de Cultura, do qual guardo os folhetos, bonitos, com o regulamento apetitoso.

Mas Flora Süssekind ajuda o leitor ingênuo a compreender um pouco melhor os mecanismos que fazem com que um escritor publique livros e fique famoso e outros, não. Um pouquinho mais de claridade, por favor. Políticas públicas que funcionam apenas para pequenos grupos. Não é a mesma coisa hoje em dia? Quando o Estado se mete na produção cultural, no que é que pode dar? Quem são os jurados? Quem são os calouros? Não são aqueles mesmos amigos que tomavam cerveja ontem? E que mal há nisso? Não sei. O negócio é que a gente fica desconfiada da qualidade das obras.

Nos anos 1990, um amigo meu ficou em segundo lugar no Prêmio João de Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte. Eu sabia quem era o júri, sabia quem estava concorrendo e conhecia os ganhadores. O segundo lugar me parecia digno do primeiro, mas ele era meu amigo. Ele, sim, apesar disso, ficou hype. Não somos mais amigos, mas ele circula pelas rodinhas privilegiadas da literatura paulistana. O cara que ficou com o prêmio deve ter construído uma bela casa na montanha, mas quem era mesmo? Sei lá com que parte dessa história eu preferia contar. Talvez com a casa.

Os concursos minguaram. Durante um tempo, o governo do Paraná foi o mais generoso, sob forte campanha para tornar o estado o maior produtor de cultura (digo, deste tipo) do país. E só o Paraná fazia isso. O Rio Grande do Sul preferiu investir em editoras que pareciam inofensivas e no endeusamento de meia dúzia de poetas e contistas que migraram para São Paulo. Páginas da vida literária. Ronaldo Bressane, em finais da década de 1990, afirmava, em entrevista, que não sabia o que e se os mineiros estavam produzindo alguma coisa. Quando a gente só enxerga nosso umbigo é assim mesmo. Dois ou três anos depois, uma avalanche de mineiros lançou livros pelos selos paulistanos. Aumenta meu catálogo aqui que eu te lanço ali. Fabrício Marques, nosso poeta mais querido, já dizia em sua "Minilitania da política editorial": me publica que eu te edito. E por aí vai.

Não é uma questão de ser isto ou aquilo, carioca ou paulistano, mas os cenários e os panos de fundo acabam se repetindo. Uma penca de gaúchos procurando apartamento na Vila Madalena; mineiros em férias pelo Sul; cariocas fundando grupos para mostrar que não estão em decadência; todos interligados pela Internet, que fez com que essa turma toda se encontrasse em algum nexo desta rede sem centro. Quando não havia mais concursos com prêmios polpudos, o jeito foi aproveitar que os meios de produção caíram na rede (e nas mãos dos escritores) e lançar livros bacanas. Com os contatos de Internet, fazer leitores. Com a grana dos frilas, curtir viagens a pretexto de lançar pequenos volumes a 20 reais. E deu certo.

Outro dia, para minha alegria sincera, li que lançaram o Prêmio Minas Gerais. Um concurso de literatura com prêmio polpudo e com direito até a categoria para os "da terra". Minha preguiça de tirar xerox e preencher formulários é muita, mas bem que vale a pena. Graninha boa, sem promessas de publicação. Mas que mecanismos estarão por trás de mais este prêmio? O que isso tem a ver com a economia da cultura deste momento? Por que o governo do estado de Minas Gerais teria lançado, agora, depois de anos no vazio, um concurso literário? Quem serão os jurados? Que direção tomarão na escolha dos versos e dos parágrafos submetidos à concorrência? E quem ganhar, representará o quê, de fato, para a literatura?

Não se sabe quem, desta turba de escrevinhadores, realmente restará quando estivermos velhos e impacientes. Não se sabe quantos blogs restarão na órbita mais interna da rede. As festinhas em que se discute a importância da blogosfera darão lugar a encontros de casais com problemas. Desta feita, casais que se conheceram por e-mail, como é meu caso, que, no entanto, tenho problemas comuns e de verdade. Medíocres como todos. Nem bytes, nem bits, unhas e dentes, promessas de amor e ameaças de raiva. Filhos de carne e osso, mensalidade de escola e xampu que não faz arder os olhos. O resto é bobagem. Ganhar esses concursos literários bem que aliviaria o orçamento doméstico. Quanto a virar uma grande escritora... vai depender. Vai depender do júri, dos jornalistas, da blogosfera, da política editorial, dos meus amigos roteiristas de cinema, do meu sotaque.

Me diz, Flora, se eu passar de bar em bar vendendo meus folhetos, o que será de mim? E se eu entrar num concurso? E se eu publicar um livro por um selo alternativo? E se eu me casar com um poeta conhecido? E se eu gastar meu salário viajando pelo país, dando palestras para estudantes frustrados de Letras? E se eu não arriscar nada disso? E se eu escrever contos sobre sexo, drogas e violência urbana? E se eu escrever crônicas polêmicas? E se eu abrir um blog para falar de mim? O que vai ser desta poetinha, Flora? Fico em Minas ou me finjo de paulista? Quantas barreiras a Internet neutralizou? Quantos formulários preciso preencher? Se nada der certo, ao menos acabo de construir minha casa na capital.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 28/3/2008

 

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