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Terça-feira, 29/1/2008
Quais são os verdadeiros valores?
Luis Eduardo Matta

Sou um entusiasta da internet. O seu papel no mundo de hoje, como ferramenta de comunicação e de difusão de conhecimento e informação é inestimável e muitos de nós já não podemos conceber viver sem ela. Não faço parte das primeiras gerações de internautas. Foi só em 1998, quando a internet no Brasil já contava três ou quatro anos de idade, que, aproveitando uma oportuna atualização no meu computador ― até então um 486 com Windows 3.1, adquirido em 1994 ―, decidi aderir à rede, por meio do antigo provedor Openlink. Confesso que minha adaptação às facilidades da internet se deu aos poucos, mesmo porque, dez anos atrás, o mundo virtual era ainda modesto e não oferecia as incontáveis possibilidades verificadas nos dias atuais.

Com o passar do tempo, fui descobrindo um fascinante novo canal de contato com o mundo, que fez com que os meus horizontes se alargassem de uma forma impressionante. Graças à internet, conheci pessoas que dificilmente conheceria de outra maneira e encontrei uma intensa vida intelectual fora do circuito tradicional da imprensa e da mídia, sem contar o fato de que as pesquisas que faço regularmente por conta da redação dos meus romances foram bastante facilitadas. No entanto, um dos maiores impactos que a internet me proporcionou talvez tenha sido a defrontação dura e definitiva com a realidade e, conseqüentemente, a perda de todos os resquícios de ilusão e romantismo que ainda lutavam para sobreviver dentro de mim. Pode parecer uma afirmação paradoxal, uma vez que o senso comum habituou-se a associar a internet ao isolamento social e à fuga da incômoda exposição exigida pelos rigores do cotidiano, por meio do confortável anonimato propiciado pelo mundo virtual. Mas, como sempre afirmei, a internet é apenas uma ferramenta e, como tal, não tem moral. Quem a torna boa ou má, se é que podemos estabelecer essa definição simplista, somos nós. No meu caso, em nenhum momento busquei nela um pretexto para escapar da realidade. O mundo virtual desde o início foi, para mim, não mais do que uma mera extensão do mundo real, um reflexo de tudo o que há de mais nobre e de mais abjeto na humanidade. E foi justamente essa convicção que me conduziu ao tal choque de realidade.

Explico: uma das premissas fundamentais para se viver em sociedade é a de reprimir certos impulsos e atitudes, estabelecendo limites e fazendo concessões. A vida social é, via de regra, um imenso teatro coletivo. Gastamos boa parte do nosso tempo representando. É preciso que seja assim, pois, do contrário, caso déssemos vazão a todos os nossos desejos e emoções, mergulharíamos num estado selvagem de barbárie e a humanidade desapareceria em questão de horas. As pessoas, no seu dia-a-dia, sabem que não devem sair por aí dizendo tudo o que lhes vêm à cabeça, pois, dependendo do teor das palavras, as conseqüências podem ser dramáticas. No entanto, a terra de ninguém da internet vem, aos poucos, alterando essa lógica. Salvaguardadas pelo anonimato virtual ou, tão somente, pela segurança do distanciamento físico garantido pelo monitor, muitas pessoas liberam toda uma retórica reprimida que, em muitos casos, se manifesta na forma de ofensas, injúrias, calúnias e desaforos os mais torpes e baixos. Fazem acusações e insinuações pesadas, que jamais fariam cara a cara, sob pena de levar uma surra ou, mesmo de ser presas e, por meio de depoimentos inacreditavelmente bizarros, põem a nu uma visão estreita e simplória do mundo e da condição humana. É como se a internet fosse a Caixa de Pandora dos nossos tempos, o lugar no qual um respeitável e simpático Dr. Jekyll se transforma num Mr. Hyde desgovernado, que se dedica a alimentar sites, blogs e suas seções de comentários com toda sorte de frases violentas, carregadas de um ódio e um ressentimento, que chegam a assustar.

Considerando o que eu afirmei acima ― que a internet é, ao menos para mim, uma extensão do mundo real ―, não é difícil para o leitor deste texto descobrir o porquê do meu choque de realidade e imagino que muitos compartilhem dele. Na internet encontramos as pessoas como elas realmente são, sem a diplomacia exigida pelo cotidiano. Na internet, temos a real dimensão da baixaria, da ignorância, da mediocridade, da frivolidade, da intolerância e da violência que permeiam o mundo contemporâneo. Percebemos como ideologias infames e assassinas que muitos de nós, contagiados pelo otimismo que marcou a década de 1990, imaginávamos sepultadas, continuam espantosamente vivas. Eu, particularmente, fico sempre horrorizado ao constatar como são numerosas as pessoas de nível sócio-econômico alto e formação acadêmica que escrevem e se expressam pessimamente, desconhecendo, muitas vezes, as normas mais elementares da língua portuguesa. E mais horrorizado ainda ao ver reforçada uma impressão que sempre tive de que os valores na sociedade estão totalmente invertidos e gravemente mutilados. A internet encarregou-se de tornar públicos os monstros existentes dentro das pessoas e mostrou, assim, que a humanidade está muito, mas muito longe de um grau elevado de evolução.

Uma das coisas que sempre me pasmaram é a capacidade humana de julgar os outros de maneira implacável com base em impressões superficiais. Essa não é uma característica exclusiva dos dias de hoje. O mundo sempre foi marcado, com as devidas exceções, pela intolerância. Era de se esperar, contudo, que os notáveis avanços impulsionados pelos movimentos civis do século XX, conjugados com o surgimento de um pensamento moderno, mais libertário e gregário, sob a égide do Direito e da valorização do homem, houvessem mudado esse quadro. Mas, pelo visto, não foi o que aconteceu ― ou não, ao menos, como deveria. A intolerância sobrevive vigorosa na mente das pessoas e, se não é exteriorizada ostensivamente no dia-a-dia, é porque existe, hoje, um código social que as impede de fazer isso, o que, no Brasil, se manifesta por meio do nosso velho espírito de cordialidade.

Desde a infância, procuro ter uma conduta correta com todos à minha volta. Quem me conhece e conviveu comigo ao longo da minha vida, sabe muito bem que sempre respeitei as pessoas como elas são e nunca esperei delas uma mudança de comportamento que se afinasse com a minha maneira de ser. As pessoas são o que são, esse é um dos meus lemas. Graças a essa postura, tive e tenho amigos de todos os tipos: esquerdistas radicais, direitistas ferrenhos, ateus, praticantes de diferentes religiões, pessoas de etnias as mais diversas, de todas as idades, e por aí vai. Muitas vezes as afinidades ― item, a meu ver, indispensável para se construir uma amizade ― são menores do que as diferenças. Sempre admirei a diversidade, e muitos dos meus amigos, sei disso, pensam como eu. Para mim, essencial num amigo não é se ele professa tal religião, ideologia política, se gosta de samba ou de ópera, se usa roupa deste ou daquele tipo, e sim o seu caráter, a sua lealdade, a sua honestidade, o respeito para consigo mesmo e para com os outros e uma sólida conduta ética e moral (não confundir, por favor, com moralismo). Esses são os verdadeiros valores. Valores que, infelizmente, estão cada vez mais fora de moda.

Digo isso porque, não raro, ao navegar pela internet, deparo com depoimentos, muitos dos quais escritos por gente culta e bem articulada, contendo diagnósticos demolidores sobre pessoas, apenas porque estas se vestem de determinada maneira ou porque defendem um ponto de vista diferente sobre determinado tema, em geral, um tema banal. Julgam a pessoa pela aparência, sem se preocupar em saber como ela é realmente, sem pensar que aquela pessoa que, à primeira vista, parece tão deplorável, poderia se tornar um grande amigo. A internet está repleta de comentários raivosos e arrogantes que desqualificam gratuitamente fulano ou beltrano porque ele é um "mauricinho" (?), ou tem um gosto literário duvidoso, ou votou no candidato tal ou porque "gosta de aparecer", e por aí vai. A lista de impropérios é infinita. Não entendo o que motiva esses ataques. Inveja? Ressentimento por saber que suas opiniões não serão acolhidas de forma unânime e que sempre haverá a possibilidade de vozes consistentes virem contestá-las? Uma ânsia de impor a própria maneira de ser e de pensar, disfarçando, assim, uma íntima e incômoda sensação de insegurança e menos-valia? Um apego demasiadamente romântico e irracional a certos ideais, estilos de vida ou preferências estéticas e culturais, a ponto de enxergar em alguém que pense ou aja de outra maneira, um inimigo? Já ouvi de pessoas que adoram se definir como modernas e despidas de preconceitos, declarações pretensamente libertárias que, no fundo, revelavam uma altíssima voltagem de intolerância, quase beirando o ódio. Da mesma maneira, tive a satisfação de presenciar inúmeras vezes a aproximação de pessoas que, a princípio se estranhavam e que acabaram se tornando grandes amigos. Nesse ponto, eu rezo pela cartilha de Jorge Amado, que foi, durante décadas, grande amigo de Adonias Filho, embora ambos os escritores tivessem sérias divergências ideológicas. Homem de esquerda, Jorge Amado afirmava, com orgulho, que Adonias Filho, que fora integralista e apoiara o golpe militar de 1964, não era seu inimigo e, sim, um adversário no campo das idéias políticas. Um depoimento desses é uma verdadeira lição de vida, que nunca se esquece. É desse grau de amadurecimento que as pessoas andam precisando. Seja na vida real ou na virtual, uma vez que ambas se complementam.

Entretanto, apesar da minha crescente decepção com o ser humano, reforçada por todos esses anos de convívio com a internet, tenho esperanças de que as coisas podem sempre melhorar. Ainda porque existem no mundo ilhas de civilidade, sabedoria, caráter e inteligência e graças a elas o mundo terá sempre um lastro que ajudará a atenuar a acelerada rota de decadência na qual nos encontramos. Já aos intolerantes de carteirinha, vai uma dica amiga: procurem conhecer melhor as pessoas antes de fazer mau juízo delas. Comunistas e capitalistas, mauricinhos e descolados, apreciadores de funk e de ópera, ateus e religiosos, conservadores e libertários, leitores de Harry Potter e de Ulisses, todos podem se tornar amigos ou, ao menos, conviver de forma agradável e civilizada, desde que entendam que uma das poucas certezas do mundo é a sua diversidade. A multiplicidade é uma das maiores riquezas da humanidade e o convívio com pessoas diferentes é uma chance preciosa de alargar a nossa percepção sobre a realidade e descobrir que, no fim das contas, as coisas realmente importantes são poucas e triviais. E que é perda total de tempo e de energia alimentar animosidades e preconceitos inúteis, enquanto a vida pode ser muito generosa e, sobretudo, simples.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 29/1/2008

 

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