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Segunda-feira, 11/2/2008
Desligando o Cartoon Network
Pilar Fazito

Até este carnaval, eu mal conhecia os canais de desenho animado da TV a cabo. Em menos de três dias, entretanto, tive uma overdose de Cartoon Network a ponto de acompanhar toda a saga do Ben 10, as aventuras do Acampamento de Lazlo, da turma do Scooby, das Meninas Superpoderosas etc., sem contar as vinhetas, os clips de Justin Timberlake e outros lixos do gênero.

Explico: meus sobrinhos vieram passar o feriado aqui. Com muita chuva e desânimo por parte da ala adulta, não sobrou muita coisa para fazer. E sabem como é o tempo de criança, cinco minutos são uma eternidade. Mal tiram o lápis de cor do estojo, já cansaram de colorir. A mesa de pingue-pongue que improvisei também não durou mais que 20 minutos, já que o menor, de 4 anos, não entendia a regra do jogo e o maior, de 7, preferia acompanhar a maratona dos episódios do Ben 10.

Não posso culpá-los, porque na minha infância e adolescência também me rendi, em parte, à babá eletrônica. Mas isso não impede que eu, uma mulher de 31 anos que se considera razoavelmente escolada e conhecedora (não-praticante) de muita coisa bizarra no mundo, me sinta escandalizada com muitos desenhos transmitidos pelo Cartoon Network.

O conteúdo, no geral, é de uma pobreza atroz e ergue-se no insosso tripé escatológico: pum, meleca e arroto. Não vejo problema em desenhos, filmes e novelas apresentarem cenas que contenham isso. Mas quando repetem a fórmula à exaustão, a ponto de produzirem bordões ou banalizarem o sentido dos termos, o fato se torna realmente preocupante.

Affonso Romano de Sant'Anna diz em sua crônica "Saudades da elegância", publicada no Estado de Minas de 03/02/2008: "A televisão, um termômetro simbólico de nossa vida social, está cheia de exemplos da banalização da grosseria, sob forma de pretenso humor. [...] Somos uma cultura tropical e a informalidade sempre foi um traço cativante de nosso dia-a-dia. Mas informalidade é uma coisa; grossura, outra coisa. Elegância é bom ― e eu gosto.". Concordo com o Affonso.

Mas a meleca, o pum e o arroto representam apenas a ponta do iceberg cruel do que o Cartoon Network vem ajudando a reproduzir na sociedade. Antes fosse apenas questão de elegância. Muitos personagens venerados pelas crianças são apresentados como garotos descolados, que sabem mais do que os adultos e por quem não nutrem respeito algum. Atitudes como a chantagem, a mentira, a intimidação e a afronta aparecem o tempo todo, como no caso da vinheta em que o Batman "negocia" sua aparição no canal com o personagem de outro desenho. Um diálogo mais ou menos assim: "meu amigo quatro olhos, você me põe no seu programa e eu não mostro essa fita para os seus pais". Para arrematar, Batman, Mulher Maravilha e outros "heróis" jogam a tal fita cassete entre si, enquanto o personagem tenta pegá-la no ar.

Não que os desenhos da minha época fossem inocentes. Que inocência há em Pernalonga, ou Caverna do Dragão? Mesmo assim, o humor aparentemente simples de Chaves parece criticar o mundo adulto de forma menos agressiva do que os desenhos atuais. É isso: agressividade e dissimulação. As crianças estão cada vez mais agressivas e atrevidas, entrando numa espécie de competição com os adultos e entre si. Isso não é normal. O desenho pode não ser inocente, mas não tem o direito de roubar a inocência das crianças.

Confesso que gostei de alguns desenhos ali. Morri de rir com o Acampamento do Lazlo, até o momento em que percebi estar acompanhada de duas crianças na sala. O fato é que esses desenhos são para adultos, não para o público infantil. Assim como Os Simpsons ou South Park, devem ser interpretados como uma crítica a tudo aquilo que aparentemente apregoam. Adultos têm (ou deveriam ter) capacidade para entender entrelinhas, metáforas e ironias. Crianças, ainda não.

Claro, o desenho por si só não promove toda essa malcriadez. Somam-se a ele a malícia e o desrespeito das letras de funks e pagodes, que tratam mulheres como cachorras; a falta de tempo, paciência, dedicação e, muitas vezes, a negligência dos pais; e o (anti)exemplo da sociedade adulta. Mesmo assim, não dá para usar a velha desculpa do "eu não tenho nada a ver com isso". As crianças estão sendo obrigadas a crescer antes do tempo, perdendo o direito de brincar e nós todos temos tudo a ver com isso.

Nos últimos anos, a indústria de consumo norte-americana inventou uma nova terminologia para os pequenos que se encontram entre os 8 e os 12 anos. Agora eles são tweens, uma mistura de teen e between. Trata-se daqueles que ainda não são adolescentes, mas já se sentem como. Eles odeiam o prefixo "pré" e, embora não tenham corpo nem maturidade para tal, vestem-se e cultivam hábitos de consumo próprios à adolescência, numa pressa danada (e triste) de virar gente grande. Preciso dizer que andam se tornando o alvo preferido das campanhas publicitárias de muitas empresas?

A Cartoon Network que o diga, haja vista o clip de um cantor (cantor?) que aparece olhando para a câmera enquanto uma mulata gostosa, com um short minúsculo e arrochado, esfrega o traseiro em seu rosto. Cartoon Network! Supostamente, para crianças. E isso tudo em horário diurno, ou seja, não faço referência aqui à programação noturna desse canal destinada ao público adulto, a Adult Swim.

À primeira vista, sou contra a censura e assumidamente desbocada em muitas ocasiões. Mas meu bom senso fala mais alto do que a maioria dos meus defeitos. Sei diferenciar uma roda de amigos que toleram meus palavrões e o momento em que isso agride quem está em volta ou até pode me prejudicar.

Do mesmo modo, minha opinião quanto à censura é relativa. Em relação ao público adulto, não me importa que livros, músicas, filmes etc. façam referência a sexo, drogas, crime e por aí vai. Não é a referência a um tema que deixa o material ofensivo, mas a forma como ele é tratado. E, nesse caso, cada um sabe de si.

Mas em relação ao público infantil, sou extremamente exigente e defendo alguma forma de censura que barre aquilo que os pais não conseguem barrar. A criança é um ser em formação e ainda não tem capacidade de distinguir, sozinha, as informações que recebe diariamente. É nessas horas que entra a fase do "por que?", quando o adulto é requisitado o tempo todo na ajuda da triagem das informações.

Infelizmente, as crianças se postam na frente de canais como o Cartoon Network sem a companhia dos pais. Aliás, para eles, a babá eletrônica representa um alívio e uma oportunidade de descanso até compreensível, no caso de pais que têm jornada de trabalho de 8 horas, além do trivial "leva-busca na escola, dá banho, faz comida, arruma a casa e acompanha nos deveres".

Não acho que seja o caso de descambar para o lado oposto, o dos desenhos tão politicamente corretos que se tornam hipócritas e alienantes. Mas animadores, roteiristas, produtores e apresentadores de programas infantis deveriam estudar um pouco de Pedagogia e tentar entender melhor o desenvolvimento de crianças e adolescentes, antes de se dirigirem a eles. É preciso identificar as fases do desenvolvimento cognitivo, o conteúdo e o vocabulário apropriado a cada faixa etária.

Dizer que produzem o que o público quer ver é algo ainda mais cruel, uma vez que muitas vezes não são oferecidas outras opções para as crianças e adolescentes. Ou, pior, as que seriam outras opções já são apresentadas com o invólucro da rejeição adulta. É o famoso "eu detesto, mas isso é bom para você", que ensina as crianças a não gostarem antes mesmo de experimentar algo novo.

Em Viagem na irrealidade cotidiana, Umberto Eco resumiu o combate à crueldade da cultura de massa, dizendo que a solução não está onde ela parte, mas onde chega. Seria tolice achar que o bom senso um dia acometerá os produtores e os canais de TV, levando-os à mudança da programação e provando que o rótulo "educativo" não precisa, necessariamente, ser vinculado à "chatice". Isso não vai ocorrer. Por isso, estou providenciando o desligamento do canal Cartoon Network daqui de casa, até que meus sobrinhos tenham idade suficiente para identificar discursos indiretos e capacidade de realizarem, sozinhos, um julgamento crítico do que assistem.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 11/2/2008

 

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