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Quarta-feira, 13/2/2008
É, não ser vil, que pena
Guga Schultze

A face risonha do Mal sempre me intrigou. Os vilões estão sempre sorrindo, especialmente nos filmes "b", nas histórias em quadrinhos e em toda velha pulp fiction. A julgar pelo prazer que aparentam sentir ou pelo puro divertimento que extraem de suas maldades, de seu pacto com as sombras, eles são, sem sombra de dúvida, os seres mais felizes sobre a terra.

Muitas e muitas vezes eles gargalham, cheios de uma infinita delícia interior, e o fato de parecerem sinistros quando fazem isso se deve mais à debilidade de suas vítimas do que a qualquer outra coisa.

A gargalhada de um super vilão, de uma imperatriz malvada ou a de monstros infernais é algo estarrecedor. Se sobrepõe a qualquer tentativa de confronto verbal. Ninguém pergunta a eles por que estão rindo. Todo mundo sabe que estão rindo para si mesmos, embevecidos pelo poder que exercem sobre as vítimas babacas que, evidentemente, não têm nenhuma capacidade de perceber aquele humor contagiante.

O mocinho, por exemplo, costuma rir do seu atrapalhado ajudante que não consegue montar num cavalo direito, que escorrega numa casca de banana ou tem problemas em tirar café de uma cafeteira rebelde do escritório. Mas não acha a menor graça quando está amarrado, pendurado de cabeça pra baixo, prestes a cair num poço de lava fumegante. É a vez do vilão rir como um desmiolado, antes de abandonar o mocinho à própria sorte.

O vilão se retira, provavelmente para dar tempo ao herói, para que este capte o humor da situação, coisa que ele, herói, nunca faz. Fica lá, tentando desesperadamente se libertar e quase sempre consegue (senão a história acaba), mas não acha graça nenhuma.

Ainda que um realismo atravessado tenha se infiltrado até em filmes de puro entretenimento e esses chavões de "sessão da tarde" tenham sido hoje, em grande parte, abandonados em prol de uma crueza narrativa digna de um Tarantino, o Mal mantém seu sorriso irônico na face de seus agentes, espalhados como uma campanha de propaganda maciça pelos cinemas afora. Todo mundo sabe que o capeta é um sujeito risonho, ainda que muitas vezes possa ser desagradável. Mas, definitivamente, risonho.

Tirando a auto-estima, o Mal ri de que, afinal de contas? Antes de mais nada, me parece que ri daqueles que consideram o maniqueísmo apenas uma infantilidade filosófica.

Ok, é uma infantilidade filosófica. Mas vamos devagar. Ou divagar um pouco, melhor dizendo. O maniqueísmo pode ser considerado como uma tentativa desastrada de separar o joio do trigo, digamos assim. (Jóia, digo eu. Nem sei direito o que é joio. Nunca vi um joio. Mas acredito que seja tudo que não for o grão de trigo, no processo de extrair esse grão, certo?)

Mas é a tentativa maniqueísta de identificar o Bem e o Mal que parece meio ridícula, no final das contas. Não o conceito em si, que lida com esses dois elementos, duas entidades psíquicas, sei lá, que foram intuídas e vivenciadas longamente durante toda a existência humana, desde quando um macaco sacana empurrou seu irmãozinho do alto do galho para ficar com todas as frutas. Ou desde quando um outro macaco ajudou seu irmãozinho a subir na árvore, a salvo do ainda mais sacana tigre dentes-de-sabre. E pode ter sido o mesmo macaco vacilão quem perpetrou as duas ações, a de salvamento e a de sacaneamento (sic) do seu semelhante.

O que o maniqueísmo traz como verdade, apesar da sua incipiente capacidade de lidar com essa verdade, é que os dois elementos, Bem e Mal, são antitéticos, antagônicos, incompatíveis e não complementares. Mesmo que o macaco seja o mesmo.

Não importa que sujeitos como Richard Dawkins se desfaçam da questão mística do confronto e que apontem só a realidade dos genes trabalhando ― muitas vezes em franca desarmonia ― para manter a espécie, o grupo ou o indivíduo e, em última instância, para manter a si mesmo, gene, no pool dos genes que permanecem na ativa, ao longo dos milênios. Importa é que as duas forças, Bem e Mal, têm naturezas distintas. Dawkins provavelmente daria risadas sobre o pretenso misticismo desse contraste, ainda que seus "genes egoístas", como ele gosta de dizer, se apresentem extremamente "maquiavélicos" no sentido comum do termo, ou seja, malvados.

Para agravar a confusão, dificultar ainda mais o discernimento comum, mas difícil, do bom senso, há a questão cristã dos mártires. Aqueles santos. O nível mais alto da bondade humana, segundo a Igreja, está definido nos santos. Muitos foram mártires e, como o nome diz, martirizados das formas mais loucas, da pedrada ao ataque de bestas feras, enterrados vivos ou cozinhados no azeite.

Sem querer discutir o mérito dessa bondade suicida, os santos apresentam, geralmente e junto com essa bondade toda, um alto nível de bobeira. Bons e bobocas. Como já disse, não pretendo desacatar a imagem desses santos homens, mas apenas apontar para a maléfica equação cristã: Puro + Indefeso + Ingênuo = Bom. Uma equação do Mal, diga-se de passagem. Com sua contraparte, também do Mal: Esperto + Agressivo + Inteligente = Mau.

Estamos muito acostumados à essa fórmula, de forma que nos enchemos de uma ternura meio vagabunda por personagens que a gente vê por aí nas telas como, por exemplo, o sábio, despenteado e bondoso astrônomo, um velhinho pateta, que não sabe sequer amarrar seus sapatos direito e se esquece até de comer, observando uma chuva de meteoros. Que vem em sua direção, é claro. Desnecessário lembrar que os sábios bondosos são notoriamente incapazes de correr para salvar a pele. Ou pelo jovem rapaz negro, que tira o capuz que escondia seu rosto e resolve dizer umas verdades, bem no meio da convenção anual da Ku Klux Klan. O cinema está cheio de cenas desse tipo.

Em Dança com Lobos, Kevin Costner faz o soldado da cavalaria americana que é acolhido gentilmente pelos índios e aprende a gostar deles. Durante o longo tempo em que permanece na aldeia dos índios, ele está vestido como soldado da cavalaria. Quando fica sabendo que outros soldados estão acampados num local próximo dali, ele parte para tentar intermediar o conflito iminente e vai, fantasiado de índio dos pés a cabeça, tentar convencer seus antigos companheiros indianófobos que os índios são gente boa. Ou seja, seu crescimento interior como ser humano é claramente acompanhado de um equivalente e progressivo retardamento mental.

Porque também é estranho a gente torcer pelo canibal Hannibal (Anthony Hopkins), por exemplo, no Silêncio dos Inocentes (e nas seqüências inevitáveis). Excetuando-se o pequeno desvio de caráter que faz com que ele goste de morder a cara das pessoas e chupar seus cérebros, o homem é de uma inteligência brilhante, calmo, culto, paciente, confiável, honesto, capaz, generoso e não sei mais o quê.

Na verdade, o que a gente gosta nesses psicopatas brilhantes do cinema é que eles não são indefesos. A gente sente que poderia confiar neles em questões cruciais de vida ou morte, caso eles estivessem do nosso lado. A própria vida não passa de uma questão dessas: uma crucial questão de vida ou morte. Não dá pra confiar em mártires nem em seus métodos, em qualquer momento que seja decisivo. Mártires já vão morrendo logo de saída. Costumam defender, com a própria vida (!), a tese de que os bons são perdedores natos, losers radicais. Morrem à-toa, à-toa.

Quando menino eu ficava pensando, às vezes e com uma certa revolta, como o Super-Homem podia ser tão boboca e mal dar conta do Lex Luthor, um careca temível, que não tinha poder nenhum, apenas uma evidente inteligência superior, sendo, portanto, portador da famosa síndrome do "gênio do mal". Ou no estranho confronto entre a máscara negra do bem, o Batman e a face branca do mal, o Coringa. Eram os mistérios maniqueístas, dolorosos para muitos, gloriosos para outros tantos e gozosos para uns poucos.

Segundo o já citado Richard Dawkins, podemos ter genes, ou cópias genéticas com alguns meros milhões de anos de idade, que comandam até nossa maneira de pensar, mas nenhum desses genes ainda chegou perto de definir os limites entre os dois territórios. Parece que esses milhões de anos são pouco tempo para arriscar uma resposta qualquer à milenar questão do Bem e do Mal. Por enquanto, fico com a opinião do Millôr Fernandes, que disse que "o genial do homem é a bondade". E estamos conversados.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 13/2/2008

 

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