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Segunda-feira, 25/2/2008
Pagã or not pagã, that's the qüestã
Pilar Fazito

Pagã. Foi assim que a freira velhinha para quem dei lugar no ônibus resumiu em dois segundos os meus treze anos de tormento existencialista. Eu sabia que não era pagã, mas depois que a serva do senhor cravou essa conclusão na minha testa, nem eu nem Ele, desdobrado na santíssima trindade, conseguiria convencê-la do contrário.

Lembro-me bem disso. Eu era uma adolescente cheia de espinhas que estava tentando ser gentil. Adolescentes cheios de espinhas que tentam ser gentis não devem ser contrariados, pois esses episódios os acompanham para o resto da vida. Nunca mais tive boa vontade com freiras velhinhas.

O fato é que a freira resolveu pregar e eu caí na besteira de dizer que era batizada. E só. Não, eu não fiz primeira comunhão; nem crisma. E não me preocupava com a complicação na hora de casar na igreja porque, a bem da verdade, se fosse para casar, eu preferia um casamento com aquelas festanças gregas ou judaicas, em que noivos e convidados jogam pratos para todo lado, ou dançam "Hava Nagila". Mas não entrei nesses detalhes todos. Apenas disse que não tinha feito a primeira comunhão. E ela me carimbou um "pagã" que me fez perder o rumo de casa. Quando consegui encontrá-lo novamente, a primeira coisa que fiz foi correr ao dicionário e tentar entender em que acepção eu me encontrava. Para o meu alívio, nenhuma. Decerto, a freira havia surtado.

O fato é que eu estava numa fase terrível de questionamento de tudo. Fase essa que começou quando nasci e me acompanha ainda hoje. Minha mãe até tentou ensinar alguma coisa do catolicismo para os filhos antes de simpatizar com o espiritismo e depois mudar de idéia de novo... Mas meu pai, um ex-coroinha revoltado e convertido ao ateísmo, fazia questão de nos pregar o seu materialismo científico. Deu no que deu.

Estudei em colégio católico e não fui dispensada das aulas de religião. Cantava a "Oração de São Francisco" na capela da escola e, ao chegar em casa, folheava enciclopédias sobre o evolucionismo e assistia à série Cosmos, do Carl Sagan. Nessa época, tentei conciliar os extremos a fim de encontrar alguma lógica em meio a tanta informação desencontrada. Depois de questionar a veracidade do que estava a minha volta, cogitando o fato de eu ter sido abduzida e de tudo não passar de um teatro alienígena ― em que aqueles a quem eu chamava de pais eram, na verdade, ET's ―, cheguei à conclusão de que Deus detonou o big bang, as amebas viraram macacos e Adão e Eva eram seus primeiros descendentes diretos. Mas a professora de religião não gostou dessa teoria. Meu pai também não. Como Deus não falou nada, continuei acreditando nisso por algum tempo.

A verdade é que os assuntos religiosos sempre chegaram a mim revestidos de ficção. Eu via o Charlton Heston abrindo o mar vermelho na Sessão da Tarde e, dias depois, fugindo numa biga romana; e tentava entender onde o menino Jesus se encaixava ali. Aliás, esses filmes de Sessão da Tarde eram sempre muito parecidos e, como ninguém me explicava patavinas, durante anos acreditei que todos eram a mesma pessoa: Matusalém, Maomé, Moisés. E que tudo fazia parte do mesmo universo: Jesus, Deus, Aladim, Alá, os apóstolos, os Titãs, Ali Babá e os quarenta ladrões, Sherazade, Cleópatra etc.

Mais tarde, passei a ter vergonha das gafes e da salada mental que eu fazia com isso tudo. Comecei, então, a estudar e tentar entender melhor a história do cristianismo e a motivação muçulmana e judaica. O problema é que quanto mais estudo, menos entendo; o ser-humano, não seus deuses.

Religião é um assunto que sempre me causou admiração e repulsa. Gosto de entender as religiões sob um ponto de vista antropológico e ficcional, observar os argumentos criados pelo homem para fazer uma história tão fantástica ser considerada crível. Mas detesto acreditar em tudo que seja institucionalizado, legalizado, generalizado e passado em cartório. Não consigo conceber a idéia de um Deus único, onipotente, onipresente e prepotente do qual saímos à sua imagem e semelhança. E, Santa Maria, como é difícil aceitar a trindade católica em que, de repente, o pai é o filho e o Espírito Santo, tudo ao mesmo tempo! E depois dizem que a gramática é que não tem coerência...

A cada dia, tenho mais fascínio por religiões politeístas ou que acreditam em um deus anamórfico, numa força criadora, energia coletiva, ch'i etc. Gosto de imaginar que tudo isso que vemos possa ser fruto da imaginação de alguém, e então viveríamos numa espécie de rótulo da aveia Quaker, um mise-en-abîme que esconderia universos paralelos infinitos e, Zeus queira, em um deles eu tivesse ganhado na loteria.

Não existe nada mais maravilhoso do que a Teogonia. Imaginar a criação do mundo, as rixas e os humores divinos situados entre o Olimpo e os Campos Elíseos, além do destino comum a todos os mortais no Hades, me dá um prazer indescritível. Tanto quanto esmiuçar o mito de Lilith em oposição a Eva ou ler sobre a queda de Lúcifer. Com todos os exageros, essas histórias me parecem mais verídicas do que a busca pela perfeição exigida por muitas religiões, já que admitem as características humanas sem cair no julgamento reducionista bem x mal.

Há quem necessite de um salvador externo. Aquele Deus-herói que direciona a vida do fiel e que bate primeiro, mas dá a certeza de que vai soprar depois. Definitivamente, esse não é o meu. Que não seja: independentemente da crença escolhida, que faça sentido ou não, é preciso acreditar em algo. Isso não significa destinar 24 horas por dia à bíblia, à torá, ao alcorão ou ao horóscopo. Não é a religião o ópio do povo, mas o fanatismo.

Acreditar em algo, nem que seja na própria ciência, é uma forma de construir uma lógica para nós mesmos, de tentarmos justificar a nossa existência ― algo injustificável, diga-se ― e impedir que cometamos suicídios em massa. Quando o assunto é religião, não interessa se Deus existe, mas se nós realmente existimos. E é bom não perguntarmos demais ou começamos a desconfiar.

O Brasil é um país alegre justamente porque acredita. Aqui a gente acredita em tudo ao mesmo tempo: Deus, ET's, espíritos, vidas passadas, duendes, orixás, profecias e até nos políticos e na mídia.

Já uma nação descrente apresenta altos índices de suicídio, de ingestão de calmantes e antidepressivos, além de ser um grande comprador de livros do Paulo Coelho. São todas tentativas desesperadas de se acreditar em algo, uma vez que nem a Carla Bruni nua no sofá, cantando "Raphaël", é capaz de aplacar a descrença dessa gente.

Em relação ao objeto de crença, tanto faz se é um Deus onírico, um monolito ou uma garrafa de coca-cola que cai do céu no deserto africano. O importante é ter fé. E fé é como escova de dente: cada um tem a sua.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 25/2/2008

 

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