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Quarta-feira, 5/3/2008
Dançando com Shiva
Guga Schultze

O terreno religioso é puramente conceitual, ou conceptual. E a concepção religiosa de Deus é falha, todo mundo sabe disso. Existem várias, e a maioria é extremamente mesquinha, pobre, mirrada ou completamente maluca.

E tudo, no âmbito religioso, é só uma concepção, porque você tem concepções políticas, mas existe a práxis política. Você tem concepções científicas, mas existe a práxis científica, correndo nos laboratórios do mundo, mesmo que você nunca tenha estado num deles. Arte, literatura, filosofia (bem menos) e esportes (bem mais) têm o lado prático, empírico, experimental.

Você pode, por exemplo, ler uma fantástica teoria do teatro, seja defendendo o povo e a conscientização política do povo, seja reclamando da necessidade premente de um maior envolvimento do teatro na ruptura da "zindiferença socio-econômica da zelite". Ou pregando o encurtamento da distância entre as classes sociais de uma forma brechtiana, ou seja, com a extinção de uma delas. Ou pode ler uma coisa que seja em prol de um elitismo transgressor dos cânones estéticos-metafísicos do teatro enquanto arte, seja lá o que isso queira dizer. Ou coisa que o valha.

Mas você também pode, simplesmente, ir ao teatro e assistir a um bando de atores pelados gritando pelo palco; ou ir e chorar com um dramalhão de novela mexicana; ou rir até fazer xixi nas calças com uma comédia de (maus) costumes. Alguém faz teatro, existem troupes teatrais e, bem ou mal, praticam teatro, a despeito de toda teoria. Ou, exatamente, para corroborar ou experimentar alguma teoria.

Nas religiões tem-se apenas o lado conceitual. Caridade como práxis? Você não precisa ser religioso para ser caridoso. Se a isso resume-se sua práxis religiosa, não é um bom argumento. Rituais, missas, rezar o terço, confissões e sermões da montanha ou do subúrbio? É uma práxis muito mixuruca, devo dizer.

É mixuruca porque alguém, ao segurar um monte de bolinhas presas num cordão e passá-las entre os dedos, murmurando uma ladainha repetitiva como um vinil arranhado, tem um objetivo, não muito modesto. Alguém fazendo outra coisa mais simples, como se ajoelhar e unir as mãos ― enquanto reza para que tenha sobrado pelo menos uma hóstia na taça que o padre segura, já que deu o azar de ser a última pessoa na fila da comunhão da paróquia ―, espera um certo resultado.

Então; isso é uma práxis mixuruca porque essa pessoa, geralmente uma boa pessoa, cheia de boas intenções, pretende, com essas práticas simples (para não dizer simplórias), entrar em contato, ou em comunhão, com ninguém menos que o criador do universo. Ouso dizer que isso é impraticável, apesar de todo esse esforço enorme.

O tamanho do universo ― digo, só do universo conhecido ― é algo estarrecedor. Os astrônomos não confessam, ou não gostam de falar, que o universo conhecido pode, perfeitamente, ser apenas uma pequena parte do universo total. E o que isso significa? Entre outras coisas, significa que somos infinitesimalmente menores do que imaginamos. Uma lógica, implacável como a dimensão absurda do universo, se instala a partir daí: o criador desse mesmo universo abissal não ia tomar um minúsculo pontinho, perdido no nada, como o centro universal de suas atenções, como querem as três grandes religiões monoteístas.





Acima, uma pequena demonstração do tamanho de alguns astros.

Se Deus diz alguma coisa ao ser humano, através do turbilhão alucinado de incontáveis galáxias, ele diz: "Se vira, meu filho. Da melhor forma que puder. Ou não (o lado baiano de Deus). Tu é que sabe."

Por outro lado, temos também o problema do Big Bang. Não gosto pessoalmente da teoria do Big Bang por dois motivos principais. Um deles é a mesma e já citada dimensão escalafobética do cosmo. Acho deselegante, mesmo matemáticamente deselegante, uma explosão dessa amplitude ou a tentativa de mensurar algo assim. Filosoficamente, acho também deselegante que uns seres extremamente efêmeros, dentro de um átomo igualmente efêmero, dentro de uma molécula que está dentro de um grãozinho de areia, pretendam calcular a origem, o tamanho e a idade da praia inteira.

O segundo motivo é uma questãozinha que sempre me pega, a respeito do espaço e do tempo. O espaço já é um problema sério. O espaço puro, com suas três dimensões, é algo, é alguma coisa que existe e, ao mesmo tempo, não tem absolutamente nada ali. Criar matéria dentro de um espaço é até imaginável, mas criar o próprio espaço, juntamente com a matéria em expansão dentro do espaço, me parece um golpe baixo do pessoal do Big Bang. Explica aí como o espaço, em si, se expande. Se expande pra onde?

Outro probleminha é o tempo. O pessoal do Big Bang calcula que houve um momento, aproximadamente há dezesseis bilhões de anos, como sendo a origem de tudo. Do tempo, inclusive. Temos então essa vaga idéia de que o tempo começou há muito tempo.

Ok, deixa eu dizer uma coisa: o tempo se origina em algum lugar do futuro. Imagine um rolo de papel (tudo bem, pode ser um rolo de papel higiênico) que se desenrole continuamente e passe sob uma caneta, que vai deixando sua tinta nesse papel. Ou seja mais poético e imagine um riacho que passe por uma varinha que está fincada no fundo do riacho.

Certo, vamos à esperada analogia, sorry, bem primária: a vareta é o presente, imóvel no fluxo do tempo. O futuro é a água que está sempre vindo, assim como o passado é, literalmente, água passada. O importante aqui é notar que o tempo vem ao seu encontro, trazendo do futuro, os segundos, as horas e os dias que você provavelmente ainda vai viver, e levando, em direção ao passado, os já vividos. Ou seja, o tempo tem esse movimento de aproximação e se origina em algum ponto do futuro, e não pode ter "começado" há não sei quantos bilhões de anos atrás (um pleonasmo meio necessário aqui).

Então, entre concepções científicas meio arbitrárias, a respeito da origem do universo, e concepções religiosas fajutas, a respeito do criador do universo, vamos testar uma concepção mais antiga e mais arejada, mais filosófica que religiosa, e mais poética do que científica. Vamos dar uma olhada na imagem do antigo deus Shiva, da literatura védica hindu.

Os Vedas são o conjunto da literatura sacra da antiga India, carregada de simbolismo e seus deuses não são exatamente personalizados, como no ocidente. Representam coisas, ou forças, ou manifestações de energia; são símbolos, mais para meditação do que para veneração pura.



O deus Shiva, nessa representação, é conhecido como Shiva Nataraja, que significa Shiva, o rei que dança, ou da dança. A imagem representa Shiva em sua dança cósmica. Shiva é um dos três princípios universais da realidade cósmica, segundo os Vedas; sendo que Brahma é o princípio criador e representa a origem do cosmo; Vishnu é o preservador, que encarna o fato de que o cosmo existe e continuará existindo, a despeito disso ser praticamente um absurdo. Shiva é o princípio destruidor, comumente assim chamado. Mas é melhor encará-lo como o executor dos ciclos eternos, vida e morte, de toda matéria e energia cósmicas.

Shiva dança porque os antigos hindus associavam a arte da dança com a arte de expressar o belo. O cosmo é terrível, mas é belo, assim como Shiva. Os antigos iogues afirmavam que a energia de seres evoluídos podia ser percebida quase como tentáculos luminosos a partir de seu centro energético. Assim, os deuses hindus representam essa energia e possuem, geralmente, vários braços.

Uma das mãos de Shiva está aberta num sinal tradicional que significa tanto a ausência de medo como um gesto de proteção. Outro braço se estende à frente e significa a tromba de um elefante, um animal que tira com facilidade os obstáculos de seu caminho. Outra mão toca um pequeno tambor, a vibração original da matéria e energia. Shiva marca o compasso de sua dança com esse tambor. E, em oposição, na palma da outra mão, uma chama, uma pequena labareda que significa o fim, a dissolução de todas as coisas. Ou seja, o ciclo constante de nascimento, existência e morte de todas as coisas. A face é propositalmente tranqüila e sem expressão passional, querendo transmitir o mergulho interior. Shiva olha para dentro de si mesmo. A perna levantada é a elevação, o desapego à matéria e, finalmente, temos a outra perna, cujo pé está sobre a figura de um anão, que representa a matéria e a ilusão dos sentidos. Alguém diria: nossa santa ignorância. Shiva esmaga com seu pé toda e qualquer ilusão.

Rodeando Shiva, num arco, está a serpente, ou seja, o infinito. As pequenas chamas exteriores são uma representação do próprio universo.

À medida que o tempo passa, passamos junto com ele. Pagamos nosso aluguel, lemos nossos livros, escrevemos outros, discutimos sobre política e futebol, namoramos igual cabritos, vamos ao cinema, enchemos a pança, falamos demais, ouvimos de menos e, perto do fim da jornada, começamos a sentir o pé, meio pesado, desse deus antigo.

Ainda que eu não seja, de maneira nenhuma, religioso; percebo que sou ateu apenas nesse sentido, no sentido religioso. Na verdade, considero os religiosos mais ateus que eu mesmo (na medida em que negam fervorosamente a idéia de um Deus possível, insistindo no deus absurdo que imaginaram). No entanto, vejo as pegadas de Shiva por aí. Das torres do 11 de Setembro às contrações mínimas do Sol, dificilmente detectadas, mas inevitáveis, e que prenunciam, num espaço de tempo de bilhões de anos, sua eclosão em super nova, quando o sistema solar inteiro vai virar farelo de cinzas. Ok, ainda temos muito tempo, é claro. Tempo para quê?, me pergunto. Para tentar fazer da vida um momento legal.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 5/3/2008

 

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