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Quinta-feira, 6/3/2008
Deus & Filhos Cia. Ltda.
Adriana Baggio

Minha família descende dos italianos que pediam a Deus uma terra sem fome nem frio para morar. O melhor que conseguiram foi vir para o Brasil em 1878. Deveriam ter ficado em Morretes, no litoral do Paraná, mas não se adaptaram ao calor. Subiram para Curitiba sem saber que, um século depois, seus tetranetos fariam o caminho contrário nos finais de semana, para comer barreado às margens do rio Nhundiaquara.

Acho que antes mesmo de construírem um abrigo para se proteger da geada, os italianos devem ter organizado um lugar que pudesse servir como igreja. Na parede de um restaurante de Santa Felicidade, o bairro que chegou em um navio, uma foto de 1908 mostra colonos posando em frente à imponente igreja em construção, com a nave pronta mas a torre ainda pela metade. 30 anos depois de chegarem aqui, provavelmente ainda não tinham lindas casas ou belas roupas, mas a igreja já tinha o porte de sua fé.

Portanto, é natural que eu acredite em Deus desde sempre e tenha certeza de que Ele está em algum lugar e pode fazer algumas coisas por mim. Nunca me importei que Ele fosse uma abstração. Meus pais me falaram que ele existia e não havia motivos para duvidar. Talvez tenha tido sorte em não passar por situações tão cruéis a ponto de questionar a existência Dele. Então, mesmo vendo na TV as atrocidades na África, as tragédias da natureza e as balas perdidas no Rio de Janeiro, continuo achando plausível que haja alguém acima de nós e a quem possamos recorrer depois que já fizemos muita merda e tudo está indo por água abaixo.

Deus sempre teve um papel claro para mim. Ele era alguém para quem eu deveria rezar todas as noites antes de dormir, além de ser o pai de Jesus. E por mais que as freiras tenham tentado me explicar a Santíssima Trindade, para mim cada um tem seu lugar, mais ou menos como uma grande empresa. Deus é o CEO. Mesmo que Jesus e o Espírito Santo possam ser muito, muito importantes, Ele ainda é o chefe. Posso rezar também para Jesus ou contar com o Espírito Santo, mas sempre sabendo que, na verdade, a decisão final é de Deus.

As igrejas católicas sempre tiveram muitas imagens porque era a forma mais fácil de educar o povo predominantemente analfabeto da Idade Média. Mas não existe imagem de Deus nas igrejas. Tem de Jesus, aquele moço de cabelos longos e barba, e do Espírito Santo, que é uma pomba. É um desafio falar com alguém que não tem rosto ou outro tipo de materialização. Mesmo as Panteras, quando falavam com o Charlie, podiam se dirigir ao rádio. Então, para visualizar Deus, apelamos para ícones construídos pela cultura de massa, como um senhor alto e forte, de barbas brancas e rosto meio severo, parecido com Zeus. Alanis Morissette, Morgan Freeman e Antonio Fagundes não conseguiram mudar essa imagem na minha cabeça.

Quando você não entende o que o padre fala, as figuras são mais interessantes de se prestar atenção. Mais tarde, você talvez passe a entender, e às a vezes a não concordar com as palavras do sermão. Mesmo assim, o ambiente da igreja é reconfortante. Repetir automaticamente as fórmulas da liturgia católica funciona como uma espécie de mantra. Só de estar ali, naquele ambiente, a pessoa já se sente melhor e mais próxima do que deseja - conseguir alguma coisa ou se livrar de uma cupla.

E mesmo aceditando em Deus e curtindo os rituais católicos, tenho me afastado da igreja. Não fossem os casamentos e missas de sétimo dia, já estaria totalmente desgarrada do rebanho. O fato é que a igreja, pelo menos a católica, coloca limites muito rígidos para alguns, mas afrouxa para outros. Padres pedófilos continuam sendo padres e exercendo seu sacramento. Homens e mulheres fiéis, bons e generosos, mas divorciados, não são bem-vindos na igreja.

Mesmo com todas as críticas que tenho sobre a igreja na qual fui educada, não posso culpá-la por não ir mais à missa todo domingo. Infelizmente, minha ausência tem mais a ver com preguiça e falta de hábito do que com revolta. Mas não é o hábito e o exemplo que incutem valores e educam as crianças e os adolescentes?

Minha mãe era professora no curso de catequese. Quando meus pais se separaram, a paróquia achou melhor que ela não continuasse com essa atividade. Para as crianças, ela seria um exemplo contrário ao que a religião ensina - mesmo que todas as suas outras ações na comunidade fossem exemplos positivos e muito mais poderosos para quem quisesse seguir.

A igreja teve razão na questão do exemplo. Minha mãe parou de ir à missa com a regularidade anterior e nunca mais nos obrigou a ir com ela. Perdemos o hábito, que já não é fácil de manter com tantos estímulos, programas e atividades que puxam a atenção dos adolescentes.

É por essas e outras que os católicos se afastam da igreja e, talvez, de Deus. Eu sei que Deus não tem nada a ver com os padres e as freiras, apesar de serem Seus representantes. Mas você continua indo na loja em que os vendedores te atendem mal só porque você sabe que o dono é bacana?

Apesar de tudo isso e das declarações temerárias do Papa, ainda acho que acreditar em Deus e seguir uma religião faz mais bem do que mal para as pessoas. (Por favor, não vamos levar em conta os fanatismos.) De uma forma geral, o que as religiões fazem? Divulgam um código de valores, cobram uma atitude correta dos seus fiéis, pregam a generosidade e a solidariedade, indicam alguém com quem todos podem contar.

O fato é que religião e igreja nem sempre têm a ver com Deus. Talvez Ele devesse construir novas sedes, mudar o formato do negócio, promover um curso de atualização para Sua equipe. Deus poderia iniciar um processo de revitalização de marca, eliminando as impressões negativas que foram surgindo com o passar dos anos. Depois, implantaria um programa de relacionamento com seus fiéis. Nada de mídia de massa, só comunicação dirigida, para evitar que os oportunistas se aproveitem da comoção de milhares de fiéis reunidos juntos.

Mas Ele é quem sabe. Mesmo com resultados que não parecem tão promissores, Deus, em todas as suas formas, ainda detém a maior parte do mercado. Fácil, já que para crença não há concorrência. Até quem não acredita Nele, acredita em alguma coisa. E depois que o cliente adquiriu o hábito do consumo, mudar de marca é só uma questão de tempo.

Adriana Baggio
Curitiba, 6/3/2008

 

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