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Quarta-feira, 5/3/2008
Escrevo deus com letra minúscula
Jardel Dias Cavalcanti

A vida humana e cósmica é um enigma. Sempre foi e sempre será. Explicações para a razão de nossa existência sempre existiram. As mais absurdas são as de caráter religioso. A principal é a de que somos frutos da vontade divina, ou seja, um deus nos criou (sem explicar nem porque, nem para que) e estamos aqui à mercê de sua vontade. Não existe prova alguma disso. Apenas uma montanha de especulações bizarras. A maior parte das pessoas parece acreditar nas alucinadas explicações dadas pelas religiões para o sentido de sua vidinha passageira neste planeta.

Em nome da crença em um ser superior (supostamente criador disso que chamamos de vida) organizaram-se, desde tempos remotos, religiões diversas. Algumas dessas religiões, tomadas da infame crença de que eram portadoras exclusivas da "verdade", praticaram atos de extrema violência contra os seres humanos que pensavam e viviam segundo formas diferentes das suas doutrinas. Das torturas e assassinatos da inquisição católica aos atos terroristas em nome de Alá, essas religiões tornaram-se danosas à vida humana, ameaçando sua liberdade de expressão e de ação.

Contrários à crença religiosa, existe uma pequeníssima parcela da humanidade que se recusa a crer que somos produtos da ação de um ser superior, dono de nosso destino. São os Ateus (que escrevo com letra maiúscula) e/ou céticos. Particularmente, faço parte dessa turma.

Milênios de cultura, de ciência, de pensamento, não foram suficiente para explicar o sentido de nossa existência, muito menos para afastar de nossa mente infantil a crença em tanta fabulação mística. Chega a ser cômico ver como pensam, por exemplo, os católicos (em todas as suas vertentes, das mais comedidas às mais canhestras), com suas crendices que beiram o surreal. Seu céu perfeito, seu purgatório ameaçador e seu inferno assustador são construídos como imagens de um possível existir após a morte, que para o católico é tão real quanto sua própria vida na terra. Ou seja, não há droga capaz de provocar tanta alucinação quanto a religião católica. E as outras religiões também produzem sua dose de fantasias sem limites.

Explicar as razões para tal crença é um trabalho no qual a antropologia, aliada às outras ciências, deveria se deter, pois nada se compara às organizações religiosas e ao fanatismo advindo da reunião de pessoas em torno da crença em Deus.

Talvez a primeira razão para a crença em alguma coisa que sobreviva à morte seja o medo mesmo dessa morte. Saber que desapareceremos para sempre dessa vida e que jamais reencontraremos quem amamos, realmente chega a ser insuportável. E para tal desespero devemos inventar algum paliativo. Inventar uma espécie de papai do céu seria a razão também para um outro desespero: o de saber-se sozinho neste mundo, abandonados à incerteza do próprio sentido do existir.

Conviver com a idéia de que a vida é um absurdo, que a vida é uma coisa sem sentido, não é para muitos. Uma vez perguntei a um amigo meu se ele acreditava em deus ou na vida após a morte. Ele respondeu que não precisava de muletas para viver. Uma mente corajosa. No entanto, rara. Outra vez perguntei a um poeta se ele acreditava em deus, ele respondeu que deus é que não acreditava nele, pois jamais se sentira "ajudado" nos momentos de precisão por alguma força superior.

Não é fácil ser ateu. Saber que a vida não tem explicação ou um sentido definido é meio apavorante. Ver a morte nos tomar violentamente os amigos, os parentes queridos, uma criança que ainda nem viveu tudo o que poderia viver, e saber que nós não os veremos nunca mais é revoltante. Nos faz sentir tanta dor que pensamos que o melhor é nem termos nascido para assistir a tal fato. Saber também que com a morte nós mesmos vamos nos tornar apenas um pedaço de carne podre, comida por vermes ou incinerada em alta temperatura, e que disso não sobrará nada para contar nossa história, é medonho. Saber-se finito, eis o grande terror. E haja religião para sanar nosso desespero.

Do fundo desse medo acabamos construindo sistemas religiosos que se tornaram não apenas um remédio para nossa existência frágil e destrutível, mas se transformaram em sistemas de pensamento e de conduta que acabaram nos tornando medrosos e terminaram por destruir a possibilidade do livre-pensamento para todos. Em nome dessas crenças, a mais importante liberdade, a de pensamento, foi mutilada. E com ela, a liberdade de ação, o controle sobre o próprio destino, a possibilidade de escolher os rumos dos próprios pensamentos, dos próprios desejos e dos próprios sonhos. Em suma, perdemos a oportunidade de guiarmos nós mesmos as rédeas da História como um todo.

E na atual conjuntura, repleta de misticismos, que vão do baixo-escalão das igrejas evangélicas e dos folclorismos orientais até o sofisticado intelectualismo do atual papa (contrário ao aborto, ao uso de camisinha ― mesmo em regiões com alto índice de AIDS ― etc), uma sensação de regressão a tempos tenebrosos chega a nos assustar. Uma onda pesada de religiosidade vai se desenvolvendo sem controle (tomando canais de TV, rádios, jornais, congresso nacional, zonas periféricas das grandes cidades), financiada principalmente pelo capital de doadores ingênuos. Fazendo uso da ignorância dos desfavorecidos e do descaso social do Estado com os mesmos (baixo nível de renda e de escolaridade), igrejas têm colaborado para manter a ignorância e o pensamento no seu mais baixo nível. Como conseqüência, conquistas de direitos civis e de liberdade científica podem vir a serem ameaçadas.

É realmente necessário cair no buraco negro da religião para viver? Precisaríamos de páginas e mais páginas para falar do assunto. Tudo bem que a existência seja realmente algo misterioso, mas transformar nossa inquietação metafísica em instituições que exigem o mínimo de nossa mente é um descaso com a história do pensamento humano, descaso com nossas lutas pela compreensão desse mesmo mistério.

Não teríamos condições de controlar as pulsões assassinas dos humanos e sua busca desenfreada pelo poder tirânico sem a religião? A educação e o estado de direito não fariam isso de melhor maneira?

Sermos servos de doutrinas enunciadas por eunucos, que pouco conhecem da vida plena, que pouco respeitam a vida em sua diversidade de formas e movimentos (ao contrário, a excluem da própria espiritualidade) é realmente algo ainda válido?

O pensamento religioso não tem sentido algum, nunca teve, sempre foi apenas uma macaqueação dos poderosos que fizeram uso da religião para manter seu rebanho subserviente ou para manterem-se no poder graças ao direito divino, ou foi ainda uma macaqueação dos próprios fiéis que na verdade jamais seguiram os preceitos religiosos, pois eles são humanamente impossíveis de serem seguidos. Fiéis sempre foram infiéis aos preceitos religiosos.

A natureza é ainda a mais forte gerenciadora de nossa vida e por mais que queiramos fugir dela, sempre estaremos a seu serviço: comendo, bebendo, dormindo, trepando. Não há cultura que possa dominar essas pulsões. Somos seres naturalmente luxuriosos, pois a vida assim se faz, não só nos organismos humanos, mas em toda a natureza. E o prazer da existência orgânica só foi convertido em êxtase religioso quando foi reprimido de forma absolutamente castradora. A obra escultórica de Bernini O êxtase de Santa Tereza é a prova mais radical de que só existe um êxtase, o da convulsão física de todo o corpo.

É absurda a idéia de que todas as grandes conquistas do pensamento humano (arte, filosofia, ciência) sejam jogadas na lata de lixo por um bando de iletrados que, ao se organizarem nas suas seitas, abram mão do que nos torna diferente dos animais e que nos ensina que, apesar da cultura, ainda somos amimais: a inteligência.

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 5/3/2008

 

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