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Sexta-feira, 25/4/2008
Substantivo impróprio
Ana Elisa Ribeiro

Ana só
Pensa que é fácil chamar Ana? É de uma simplicidade enganosa. Não passo, desde que nasci, um dia sequer sem ouvir a pergunta: Ana o quê? Ana é prefixo, não se completa, precisa de complemento. E quem chama Ana só Ana? Parece que a mãe estava de má vontade. Não é isso? E aí começa a saga de soletrar o nome. Embora Ana possa ser simples assim, muitas Anas se chamam Anna. Até aí ainda é previsível, mas o que vem depois disso nem sempre é. Ana Maria, Ana Paula, Ana Cláudia, Ana Luiza. No meu caso, Ana Elisa não é dos mais comuns. Afora a ignorância das pessoas em relação a vogais e consoantes, começo a soletrar que meu Elisa é com S. Assim como há as Luisas e as Luizas, com e sem acento, no I, enfatize-se. E depois disso ainda preciso salientar que me chamo Ana Elisa, e não Anelise ou Anelisa ou mesmo Monalisa. Houve quem me chamasse até de Melissa. E ainda tenho que ter tempo para soletrar bem lentamente, com a fineza de dar uma pausa maior entre o Ana e o próximo nome. O fato de não começar meu segundo nome com consoante me atrapalha bastante, desde que me entendo por gente. Anelise deve soar mais lógico, não sei. Não me ocorre, no entanto, essa fusão, e então preciso explicar, incansavelmente e sem me irritar, que sou Ana, Ana Elisa.

Maria
E pensa que é bom se chamar Maria? Mesma coisa, ainda pior. Não sei, não vou afirmar porque sabe lá o peso que é nascer se chamando Maria. Ao mesmo tempo que é simples, é carregado. Maria é penoso. Ouça-se um pouco das histórias bíblicas e ainda metade das canções que foram feitas sob inspiração de Marias. Uma dor, suor, um drama. Maria não pode ser sozinha. Maria é junto com qualquer outra coisa: da Graça, da Glória, da Piedade. E é tão inócuo, assim como as Anas prefixais, que acabam se tornando apenas o segundo nome. Ou ganham apelidos. Aninhas e Mariazinhas, em Minas, Mariinhas mesmo. E vão-se de mãos dadas a mãe e a filha, avó e mãe do menino-Deus. Maria precisa de mais: Maria Cecília, Maria Teresa, Maria do Carmo. Quanta Maria não deixou o nome pra lá. E quando não é prefixo, é sufixo: Sônia Maria, Letícia Maria, que nem combinam, porque Letícia, em latim, era "alegria" (laetitia). E ainda mais: famílias inteiras formadas por Marias. A minha mesma, da árvore materna, tem lá umas tantas, todas elas: Maria Carmen, M Célia, M Patrícia, M Sílvia, M de Lourdes. As irmãs do meu pai, as duas únicas, são Letícia Maria e Maria Alice. E para não ficar só nisso, os homens da família se casaram com Marias. Um deles, não contente com tão pouco, se casou com uma Ana Maria.

Eduardo
Meu filho deveria ter se chamado E-duardo, com hífen. Talvez o moço do cartório criasse caso. Talvez ele dissesse que eu deveria preferir caracteres válidos. Alguém se chama Maria/Inês, com barra? Não. Então por que E-duardo. É que conheci meu marido na Internet. Achei que E-duardo seria mais significativo.

Compostos
Minha mãe tinha sérias dúvidas na hora de escolher os nomes dos pimpolhos. Tudo tinha que ser composto, mania de quem queria ter dez filhos, mas só pôde ter a metade disso. Bons e férteis tempos aqueles. Não precisava preocupar muito com menino. Minha avó conta que ter muitos filhos, às pencas, é muito mais fácil do que ter só um. Vejam vocês que ela me contou o segredo: ah, a gente punha os mais velhos para tomar conta dos mais novos. Perguntei: e dentista, pediatra, escolinha? Ela não disse mais nada. A gente vê as respostas nos sorrisos dos nossos pais.

Minha mãe punha lá: Ana Cristina, Ana Elisa, Luiz Alberto, mas e o Sérgio? Maior arrependimento é não ter pensado em Sérgio Luiz. Será que ele tem trauma por conta disso? Duvido. Sérgio é tão simples. Só a enteada dele é que ainda tem dificuldades. Até pouco tempo, a menina chamava meu irmão de Sergem, que também soa simpático. A garotinha, sim, é que terá problemas: Raiane com I ou Rayane com Y? O que vocês acham?

Homenagens
Diz minha mãe que escapei de Gilca. Sabe essas manias de fundir os nomes dos pais? Pois é. Em biologia isso pode se chamar hibridismo, que é quando dá certo. Quando dá errado, é monstruosidade mesmo. Gilca era Gilberto e Carmen. Tem condição? Mas colocaram uns nomes numa bacia e sortearam. Saiu Ana Elisa, com S, por favor.

Para meus irmãos, Flávio meu pai não queria porque era o nome de um cara chato que ele conhecia. Todo Ronaldo era mala. José não podia. Nome bíblico, nem pensar. O nome dele... Gilberto, de jeito nenhum. Se fosse Humberto, seria pior. Imagine um guri condenado a passar a vida ouvindo a piadinha dos DoisBertos? Mas todos os meus tios que tiveram filhos têm suas versões Júnior. Todos. Hélio Júnior, José Luiz e até a Ana Paula, que homenageou o Paulo, pai dela, já que nasceu fêmea. Mas ora vejam: o nome do Paulo não é Paulo. É José João. Com vergonha disso, ele, quando conheceu minha tia, disse logo que se chamava Paulo. Tem condição? Tem.

Júnior
Nem bem nasceu o menino e todo mundo quer saber qual será o substantivo próprio pelo qual ele responderá. Antes de Eduardo nascer já tinha muita discussão. A subjetividade das percepções desnorteia a gente. Bernardo é nome de menino gordo, dizia um. Guilherme é ruim, vai virar Gui. Gustavo é o nome daquele meu colega mala. Pior: vai virar Gugu. Pois é. Eduardo é nome forte, másculo, virou Dudu.

Mas não tivemos, sequer por um segundo, a idéia de que Edu se chamasse Jorge. Com a música da Fernanda Abreu (Jorge Ben Jor) tocando sem parar, ficava impossível. E bem que pensamos em homenagear um avô, mas isso causaria ciúmes de algum lado. Vocês haverão de convir que Gilberto Francisco não dá. Ademais, o nome da frente ou o nome de trás seria outro problema. Melhor não.

Piores são os Júnior. No Brasil, muita gente já não sabe para quê isso serve. As homenagens perpetuam nomes escabrosos por aí, menininhos lindos, de bochechas rosadas, que se chamam Aristides Rosalvo Neto. Vá lá, pelo menos é sonoro. Mas Júnior deveria ser o nome do pai, cuspido e escarrado, acrescido do Júnior. Se o pai é José João da Silva, então o guri se condena a José João da Silva Júnior. Para abrasileirar a coisa, deveria até ser José João da Silva Filho, mas fazer o quê? Filho e Júnior são equivalentes. E várias línguas têm terminações com essa função. Que eu me lembre, ao menos o russo, o inglês em várias culturas, etc. Mc (de McDonalds), O' (de O'Neil, que é o Of Neil), Vitch ou coisa parecida. Em português, mui antigamente, já tivemos o -es (ou -ez, como em espanhol). Alvares e Alves, Nunes, Rodrigues... são os filhos do Álvaro, do Nuno e do Rodrigo. Mas quem sabe disso hoje em dia? Que sentido isso faz? O negócio mesmo é pipocar no menino um Júnior e pronto, bem no meio do nome: Rafael Gonçalves Júnior da Silva. Sem condição. É Neto que não chama Neto. Sobrinho que não é sobrinho. Uma fuzarca danada. Pelo menos com mulher isso não acontece. Ao menos não com freqüência. Já os exemplos masculinos repousam no quarto ao lado. Está aqui o Jorge, que além de não me deixar mentir, é Neto da Conceição. Preciso mencionar quanta brincadeirinha ele ouve até hoje?

Exame de consciência
Toda mãe e todo pai deveriam, antes de dar nome aos filhos, fazer um exame de consciência. Em seguida, pensar na escolinha, na hora da chamada. Aquele momento de dizer "presente" é crucial para a sanidade de alguém. Crianças não lidam bem com apelidos. Em geral, se magoam por conta dos colegas cruéis que não sabem o que é se chamar Astolfo ou ainda ter, na terceira série, um Pinto no sobrenome. Bacana é ter nome estrangeiro ou se chamar Pamela.

Mas sobrenome também dá rolo. O Daniel Falkemberg que se segurasse. Corgozinho não passava desapercebido. Os italianos jamais pronunciados corretamente, como os Tognoli, Gariglio e outros que não são bem o que parecem. E a Carla Coscarelli, que mesmo tendo um nome bonito desse, já recebeu trabalho de aluno com um presente na capa: Carla Cascavel.

Apelidos
Na minha família, os apelidos se perpetuam tal como os nomes. Fábio virou Bô quando era bem pequeno. O caçulinha da família não conseguia pronunciar o nome inteiro. Por motivo menos explicável, o mesmo caçula chamava o José Luiz de Tô. O Bô sumiu no ar. O Tô é Tô até hoje. E o filho dele, que deveria ser José Luizinho, antes mesmo de nascer, para desgosto da mãe, a Ana Maria, era chamado por todos de o Tozinho. Até hoje.

Vai do jeito que dá
Ser Ana não é fácil. Soletrar o nome a cada compra, a cada telefonema, desgasta e inquieta. Bem fazia o Manuel, dono da barraca de cerveja que meu pai freqüenta em Cabo Frio: sem perguntar, escrevia no caderninho das contas Juberto, e dava cada sorrisão grandão quando a mesa pedia "mais uma".

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 25/4/2008

 

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