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Quinta-feira, 24/4/2008
Saleté S.A.
Elisa Andrade Buzzo


Foto: Magaly Bátory

Mal acabou a arruaça carnavalesca, a máquina dobra a esquina e, com eficiência germânica, aspira confetes e serpentina. Morriam num esganiço metálico as últimas notas do trio elétrico. A lembrança daquela terça-feira gorda foi sugada da minha memória e, menos de uma semana depois, não restou papel picado algum pra contar história.

Ela não tem a graciosidade enferma de uma madrinha de bateria. Numa manhã de sábado qualquer onde nada ainda voltou ao movimento e todos parecem dormir (exceto os seniors do Turisme Bleu), as escovas acopladas em seu ventre giram com ferocidade, o que não parece ser suficiente para retirar o encardido das ruas. É assim que a limpeza pública atua: rugindo e se repetindo; animal sem jaula que se farta de amendoim, mas acuado por chicletes.

Na noite anterior, este mamute mecânico não parara. A frota de carros aguardou os moradores cerrarem as cortinas e enfiarem o nariz no edredom para entrar na avenida. Em linha reta e quase sem manobras, seu ruído autolimpante embalava o sono das ruas de Belle Endormie. Ninguém se incomoda com seu pisca-pisca amarelo e na verdade poucos reparam na evolução destas criaturas.

As árvores testemunharam silenciosas a passagem de outro caminhão branco da família Propreté. Espirrando pela dianteira um líqüido contra pragas urbanas, ele passa, para logo após retornar pela outra mão da rua, desenhando uma faixa úmida da sarjeta até metade da pista. Me disseram que isso diferenciava, por exemplo, o mundo desenvolvido do mundo subdesenvolvido. Ao amanhecer, tudo estava seco e ninguém se lembrava de que estava no primeiro mundo.

E assim codinome Mathieu avança, sedento por sujeira, espraiando seu know-how de limpeza. Nos hipermercados, lá está uma outra versão intrincada na avidez consumidora, limpando, perseguindo, atropelando se necessário. Soberano, um faxineiro é o condutor nas alturas desta impressionante máquina, a qual, além das grandes escovas ultralimpantes, é seguida por um amplo rodo absorvente. Uma buzina é acionada quando há perigo de colisão. Apesar da alta tecnologia, um saco de lixo transparente fica pendurado na traseira, para o caso de uma operação manual. Não se percebe sinal algum de estranhamento no rosto dos consumidores ao se depararem com tal gigante em movimento.

Se a máquina limpa com afinco, os humanos parecem não criar vínculos afetivos com o que limpam. Esperam que os céus ou a indústria enviem outros mecanismos miraculosos? Em média uma vez por mês o interfone dos velhos edifícios do centro de Belle Ville grita com autoridade "Societé de nettoyage!" Permito, na minha vez, sua entrada, sem ver seu rosto ou suas vassouras. São xx degraus de pedra distribuídos em quatro andares, decorados com corrimão de madeira sem verniz e grade de ferro forjado. Em menos de uma hora a incrível sociedade dá as costas. Abro a porta pra ver o resultado: talvez um cheirinho de essência perdido no ar... as bitucas de cigarro do vizinho ainda estão lá, inclusive o capacho, que há tempos não vê a luz do sol. Pois ainda não inventaram uma máquina que suba escadas?

Saio em busca de ar e respostas. Pelas bandas de Quinconces grandes secadores de cabelo recolhem folhas mortas do final de inverno. Nos rastros de cocô de cachorro se inscrevem pragas e maldições. O comércio de rua fecha as portas e pelas vitrines espio as coquetes conseillers de ventes. De salto e saia ajustada, uma passa aspirador, outra tem um esfregão gosmento nas mãos. Mais alguns passos e, numa loja de sapatos, um jeune homme retoca a faxina com um pequeno espanador. É disso que precisamos, espanar a poeira, a tristeza, desintoxicar os manequins e o solo da sujeira!

Portanto, a explicação que esboço é que a mão-de-obra em Belle é luxo para poucos, daí existir uma poussière, desculpe, uma saleté, sujeira, incrustada de forma que só mesmo uma reforma profunda seria capaz de extinguir. Dizem que às vezes é melhor nem tentar limpar alguns locais, pois isso pode causar um desabamento (muros antigos, por exemplo), ao que eu concordo veementemente...

Em vez de condenarem à limpeza perpétua seus habitantes, que passariam o resto de sua vida esfregando nos halls dos prédios panos com substâncias molientes, enfiando cotonetes com álcool em cada vão puído, Belle Endormie mantém uma frota de mastodontes a serviço das grandes sujeiras citadinas. Se o resultado é bom, que importa?

En Belle-Ville il n'y a pas encore des esclaves (...)
J'ai ma propre balai (...)

O dono da banquinha de crepe se entrete no final do expediente removendo e aspirando as crostas duras de massa na chapa. Todo concentrado, se encurva e, então, sinto o prazer com que se dedica à atividade. Teria ele uma doença, mania de limpeza? Seu comércio brilha aos olhos cinzentos da clientela.

Elisa Andrade Buzzo
Bordeaux, 24/4/2008

 

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