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Quarta-feira, 28/5/2008
Machado sem corte
Guga Schultze

Falar sobre Machado de Assis é difícil; não há praticamente nenhuma novidade sobre o assunto desde que ele foi eleito ― isso foi quando? ― como modelo para jovens escritores e como tema recorrente para teses de mestrado. A literatura brasileira tem esses dois autores, sempre os preferidos para uma dissecação em aulas de anatomia literária: Machado e Guimarães Rosa. O segundo, pela evidente singularidade de sua obra, e o outro, pelo motivo praticamente oposto, ou seja, pela cristalização, pelo refinamento e pela síntese do lugar-comum.

Isso não chega a ser uma crítica muito válida, principalmente em literatura, que vive também de imensas doses de lugares-comuns. Em outras palavras, o lugar-comum tem seu lugar na literatura e, como se dizia nos tempos do Pasquim, o lugar-comum "é válido e inserido no contexto". Nada mais certo. E nada mais comum, é evidente.

É até desejável que os romances apresentem isso, esse grande mapa do pensamento, reconhecível à primeira vista, e que o bom senso narrativo seja mais uma norma do que uma exceção; que as profundidades sejam discretamente evitadas, que as pontes sejam habilmente fixadas na beira dos abismos e que os vôos não cometam a maluquice mitológica de um Ícaro ― o jovem aprendiz de passarinho ― que tentou se aproximar do sol e se deu mal.

A maioria dos leitores prefere uma paisagem não muito vasta, a linha do horizonte com contornos bem definidos, um clima suportável e, ainda, que a velocidade dos acontecimentos seja compatível com a velocidade de suas pernas, de forma que ele, leitor, possa acompanhar. Todo escritor que reforça esse quadro geral, uma espécie de entropia literária, tem grande chance de ser popular.

Machado de Assis é leve, pega leve. Tem uma delicadeza natural, que ele tempera com um ceticismo constante, calculado, mas que não chega a ameaçar. Irônico, mas não chega à ironia cortante, como se diz. Inteligente, mas sem surpreender nem causar susto. Uma originalidade comedida e bem dosada, um colorido em agradáveis tons pastel sobre uma parede, mas não uma inovação de derrubar os tijolos.

Morno, tépido, airoso, para usar uma palavra da época. Um dândi, com um humor discreto e uma filosofia melancólica de motorista de táxi na hora do rush. E, para usar uma expressão também antiga: até aí morreu o Neves. Ou o Brás Cubas. Porque nada disso constitui uma deficiência literária, propriamente falando. São características que podem, e até mesmo devem, ser consideradas como qualidades pessoais de um escritor, na medida em que esse escritor mostra desembaraço e se sente à vontade dentro delas. Isto é, desde que não sejam as limitações evidentes de um autor mas, sim, a fórmula pessoal para o exercício da arte.

Machado de Assis se mantém distante de seu próprio texto e quase nada há de pessoal ali ― um dos sinais reconhecidos da maturidade literária, de Shakespeare a Nabokov (outro dândi). De pessoal mesmo existe apenas a constante tentativa de cumplicidade com o leitor e, por falar em coisas pessoais, na minha opinião, essa é uma tentativa meio irritante. Machado não larga o ombro do leitor, onde ele pousa suavemente a mão, ajusta os óculos, pigarreia e faz questão de acompanhar a leitura.

E, se literatura é uma coisa extremamente pessoal, na medida em que o escritor escreve o que quer e do jeito que quer, sem ninguém que o oriente, aconselhe etc. (estou falando de escritores, não de alunos de oficinas literárias), é justo que a crítica seja também pessoal. Na verdade não vejo outra forma de falar sobre literatura a não ser, como leitor, respondendo ao incômodo ou prazer que ela proporciona a nível individual. De forma que não gosto de escritores que se fazem presentes durante a leitura de seus livros. Principalmente quando eles nem estão naquelas páginas, mas ficam por ali, espionando atrás do seu ombro.

Porque Shakespeare também é impessoal, ou seja, nenhuma criatura sua, nenhum personagem, é seu porta-voz e Shakespeare não defende causas. Mas ele deixa que o leitor se vire como puder. Machado é tão impessoal quanto ele (medidas as distâncias, claro) mas, praticamente, tenta virar as páginas para o leitor. É uma opinião extremamente subjetiva, essa minha. Mas absolutamente tudo em literatura é subjetivo.

Calculista, como um jogador de xadrez (que ele era), Machado mantém uma voz monocórdia, sem altos e baixos e um ritmo mais pra lento, uma marcha lenta constante. Não há muita vitalidade, ou dinamismo. Há quem goste. Harold Bloom, o crítico americano, cuja crítica é extremamente pessoal (como deveria ser mesmo), colocou Machado de Assis no panteão dos gênios literatos. Daniel Piza também gosta de Machado e escreveu uma biografia à altura (ou seja, a altura que ele, Daniel, enxerga em Machado de Assis). Outras vozes destoam. Millôr Fernandes, por exemplo, sem se empenhar muito, descarta a possibilidade do gênio e ainda goza o triângulo amoroso mal resolvido entre Bentinho, Capitu e Escobar, em Dom Casmurro. Há controvérsias, pois.

Machado de Assis é (quase) essa unanimidade, que não chega a ser burra, como diria Nelson Rodrigues, apenas meio equivocada, na questão dele ser ou não um gênio das letras. O nosso gênio das letras. O problema ― digamos que exista um problema ― não é com ele, o escritor, mas com seus leitores e, por extensão, seus seguidores, que sofrem de uma sensibilidade exagerada e levemente superficial. Por falar nisso, a mesma sensibilidade típica do século XIX, presente nos romances da época e, sem dúvida, presente nos livros do próprio Machado.

Machado de Assis não é, nem de longe, meu escritor preferido, dá pra perceber. Mas minha opinião não é grande coisa e nem pretendo que seja. No entanto, exerço o mesmo direito que ele, Machado, teve ao escrever seus livros e ao se expressar livremente neles. Todo escritor corre riscos. Um deles é alcançar a posteridade e o outro é sofrer críticas diversas, na medida em que ele incomoda certas pessoas, pessoas certas ou erradas, distantes ou não no espaço e no tempo. Alas. Mas Machado não me incomoda tanto como alguns professores me incomodaram, me obrigando a ler Machado de Assis, uma ou outra ocasião. Poderia dedicar a ele um aforismo, como se costumava fazer no século XIX, entre pessoas razoavelmente letradas: "Sê como o sândalo, que perfuma o Machado (sic) que o fere". Se ao menos eu fosse ferido por sua obra. Ou mesmo arranhado. Mas nem isso.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 28/5/2008

 

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