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Segunda-feira, 16/6/2008
Mitofagia: Machado ao molho pardo
Verônica Mambrini

Você gosta de Clarice Lispector? Eu gosto bastante. E tem toneladas de pessoas que simplesmente a idolatram, andam para cima e para baixo com bolsas estampadas com foto de Clarice, agendas de design moderninho com frases pinçadas da literatura de Clarice, livro de retratos da autora com mais frasezinhas pingadas aqui e acolá, em tipografia sutil, oblíqua. E as peças de teatro? Tentei uma vez fazer um levantamento no arquivo do Estadão de todas as obras inspiradas na obra de Clarice: peças, filmes, mostras e exposições diversas. Desisti. É vastíssimo o material, e a criatividade para criar sobre a imagem, mito e obra de Clarice é inesgotável, quase um fetiche. Clarice e seus olhos misteriosos, Clarice como uma bruxa das letras, insondável por trás da fumaça de seu cigarro. Clarice mitificada e absoluta, e ao mesmo tempo falando para a alma do leitor, tocando o visceral com dedos invisíveis.

Menos gente sabe que a mesma Clarice tinha um bizarro sotaque nordestino. Ao abrir a boca, o mito se desmancha numa voz de Macabéa. Fetiche parecido, mas menos imagético, existe com Machado (vamos, pessoas-cabeça: saiam de casa ostentando bolsas e camisetas com os bigodes machadianos. Espero ver o ridículo da cena ansiosamente). É um prazer enorme discutir Machado, a genialidade de Machado, citar Harold Bloom citando Machado. A repetição barroca irrita. A ambigüidade de Capitu, a ironia de Machado. Tem gente que detesta ironia: como esperar que essas pessoas gostem de Machado? Quando os outros são muito obtusos para entender as mensagens nesse grau de sutileza, geralmente quem passa por estúpido é você. Esse é outro clichê freqüente sobre Machado: quem não gosta, não entendeu. E é um prazer enorme saber-se iluminado, iniciado, entendido. Olhar para quem não gosta com um vago ar de desdém: a literatura como status. Ah, que saco isso. Que preguiça.

Talvez as pessoas não estejam nem mais nem menos rasas do que antes, ou talvez estejam. A escola não ensina nem o básico do português, e para se virar na vida, ganhar dinheiro e ser presidente do Brasil, muitas vezes nem faz falta mesmo. O que realmente importa é que a tolerância coletiva com a ignorância e com a falta de cultura estão aumentando. Ler Machado é a cereja no topo do bolo: é o supra-sumo de quem já domina as ferramentas básicas para entender o mundo e reagir criticamente a ele ― algo como viver em oposição a sobreviver. O autor em questão, aliás, é um só, de um cânone extenso, todo ele recomendado. Não para que se goste de tudo, mas que se possa permitir gostar de mais coisas. Se ler Machado é tão complicado, tão difícil, esqueçam Proust, e as milhares de pesadas páginas de Em busca do tempo perdido. Esqueçam uma porção de obras relevantes e cansativas.

Mas, por trás do mito, o que fica? Depois de descascar a importância de Machado na cultura literária brasileira, na renovação da língua portuguesa, a prosa toda enfim desfiada pelos fãs de Machado, sobra prazer na leitura? Sobra motivação pessoal? Porque todos os outros motivos, para quem não é crítico, acadêmico, ou coisa que o valha, me parecem irrelevantes. Nos dias contemporâneos de competição com o conteúdo praticamente infinito da internet, TV, mil meios de entretenimento e de aperfeiçoamento pessoal, qual é a motivação mais autêntica para se ler esse autor?

Leio Machado porque gosto dos jogos semânticos, porque me divirto com as críticas sociais, porque as narrativas são extremamente fluentes. Há quase nada causando a sensação de "desnecessário" que barra a leitura e levanta diques no pensamento. Releio porque acontece de às vezes estar entediada e sem paciência para assuntos ordinários ― se pelo menos as pessoas olhassem para o dia-a-dia com um olhar um pouco mais ferino... Mas a verdade é que, mesmo gostando, faz um bom tempo que não leio Machado. Alguém aí vai me recriminar por isso? Que fique à vontade. A quantidade de interesses competindo pela minha atenção, de vez em quando, vai fazer com que eu perca alguns dos que poderiam ser os lances mais interessantes na minha vida cultural. As pérolas estão aí; não vale a pena discutir com os porcos.

Em tempos pós-indústria cultural, a quantidade de informação sobre a produção artística é quase infinita. É tanto conteúdo que o problema não é ter informação disponível, mas encontrar filtros confiáveis. Quem me dera entrar numa biblioteca e, surpresa, ver os livros enfileirados, com suas lombadas de grossuras variadas, todos no mesmo papel (um couché creme, não gosto do branco agressivo que grita com a retina), a mesma fonte, uma elegante e leve, nada de serifas barrocas, e capas claras e puras. Nada de nomes de autores. Eu teria que escolher lê-los ou não sem ajuda de ninguém, na base de tentativa e erro, sem referências para poder escolher. O mito e o cânone salvam ou enterram obras com valor totalmente desproporcional à sua popularidade. É o esperado achar que o filtro do tempo e o senso crítico acadêmico, que escrevem a história literária, tenham feito o favor de nos guardar e recomendar apenas o que houvesse sido produzido de melhor nos últimos séculos. Mas é impossível saber; ao nascer em um mundo no qual já existem obras grandes, todo parâmetro de valor de grandeza do leitor já nasce contaminado de passado.

Verônica Mambrini
São Paulo, 16/6/2008

 

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