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Terça-feira, 17/6/2008
Cenas de um país machista
Daniel Lopes

Na manhã do sábado, 7 de junho último, um repórter fotográfico do maior jornal de Teresina deu palestra aos estudantes do curso de jornalismo da universidade estadual. Muita conversa vai, muita conversa vem, e o palestrante passa enfim para a exposição de fotos. Entre as quais, algumas suas, de alto ou nenhum valor artístico. Uma deste último grupo, bem recente, causou polêmica quando publicada, e custou muitas broncas e acusações de sensacionalismo ao fotógrafo.

É o seguinte (e peço perdão por perturbar o aprazível dia do leitor em busca de cultura): em uma decrépita casa de prostituição na periferia de Teresina, um homem matou uma mulher por estrangulamento e com algumas facadas. Após o óbito, ele ainda quebrou no meio um cabo de vassoura e enfiou uma das partes na vagina da vítima.

Corta para o dia seguinte ao crime. O citado fotógrafo chega ao afastado local. Para sua surpresa, ele é o único lá. O policial de vigília, ao saber de sua profissão, e acostumado aos maus hábitos dos profissionais de imprensa, apressa-se a descobrir o corpo, para ser fotografado. Mas o fotógrafo, de acordo com seu próprio relato, virou o rosto antes do corpo ser completamente exposto e disse ao policial para não fazer aquilo. Mesmo não entendendo esse jornalista excêntrico, o oficial da lei obedeceu. Com o corpo semi-coberto, a foto foi tirada.

Eis a foto: uma das paredes e o muro que limita o prostíbulo deixaram um espaço ínfimo entre eles, um corredor longo. Na véspera havia chovido, de modo que se viam pequenas poças d'água. O corpo está coberto com um papelão de publicidade, da cabeça até pouco depois dos joelhos. As pernas estão ligeiramente abertas, e já quase perto dos calcanhares acumula-se, junto com a água da chuva, uma pequena quantidade de sangue.

A cena é chocante, não pela brutalidade que explicita, mas pela brutalidade que evoca. Talvez o motivo dela ter recebido tantas críticas seja exatamente esse: ao contrário das fotos de decapitados ou de restos de acidentados, a imagem não possui aquele excesso de vermelho que, no fundo, anestesia nossa consciência e nos deixa indiferentes, nos habituando à barbárie. Ao contrário, pela mesquinhez de sangue, pela expressão apenas intuível no rosto da vítima, a fotografia nos faz pensar para além da dor. Ou seja, ao que leva à dor, ao que permite a dor. A quem infligiu a dor, e com que liberdade. É uma fotografia desconfortável.

Mas não é só isso. Apenas depois de tirada a foto, com o sangue mais frio, o fotógrafo disse que foi perceber o que havia no papelão que cobria o corpo da mulher assassinada. Era o anúncio de Juliana Paes e a cerveja do "Bar da Boa". Ao lado da modelo em pose sensual, o preço módico. Da bebida.

Enquanto isso, na ficção...
Naquele sábado, ao chegar em casa pela noite, cansado, com a cabeça perturbada, me esperava em um pacote o romance À beira do corpo, do gaúcho Walmir Ayala (1933-1991). Como não estava com vontade de sair pra lugar nenhum, dediquei o fim de semana ao livro. Algumas coisas só acontecem comigo.


Ayala: ficcionista, poeta e ensaísta

Obra de 1964, reeditada ano passado pela editora mineira Leitura, À beira do corpo é o romance de um crime. Que vitimou Bianca, a bela e branca Bianca, e seu amante Sebastião, o tenente Sebastião. O autor dos disparos foi Vicente, o ferreiro Vicente, que surpreendeu os dois no quarto mesmo do casal; a mulher pensava que o marido ia passar dois dias em viagem, mas aquela foi apenas a armadilha do marido para pegá-los juntos. A história se passa em Vila Nova, interior do Rio Grande do Sul.

A maior parte do livro é narrada por... um verme. Mas não sorria. Nenhum dos atores desse drama, nem mesmo os que acabam assassinados, tem mais noção de moral e mais escrúpulos do que esse mísero verme. Ele dá seu relato a partir do caixão de Bianca, enquanto passeia pelas partes do corpo em decomposição. Não obstante o abjeto do narrado, é um ser com veleidades poéticas, esse verme. Solene, são muitas as vezes que inicia uma oração com "eu, o verme". Verme consciente não apenas dos atos da Bianca dona do corpo que agora lhe hospeda, mas inclusive de seus pensamentos, bem como dos atos e pensamentos de todos os outros personagens. Algo improvável, é verdade, mas o que se há de fazer ― trata-se de um verme onisciente.

Nos últimos capítulos, a narração passa da primeira pessoa verminosa para a terceira pessoa. Ou melhor, para várias primeiras pessoas. É quando ocorre o julgamento de Vicente, que faz sua narrativa dos eventos trágicos e é interceptado em momentos pela irmã de criação de Bianca e pela ex-empregada do casal, que fazem o mesmo.

No julgamento de Vicente ― segundo o verme em suas primeiras impressões, "homem nada belo, nada altivo, mas investido de uma humanidade que dava caráter a cada atitude" ― há um pequeno rebuliço quando o réu confessa que, não tivesse Bianca sido tomada pelo medo quando lhe viu de arma na mão, mas, em vez disso, tivesse se arrependido a seus pés, "talvez lhe perdoasse". Então, no tribunal, "na pausa um murmúrio correu: os homens encararam duramente aquela confissão". Onde já se viu, um marido sequer aventar a hipótese de não pôr cabo na vida da mulher adúltera! O perdão não tem lugar na vida dos pios cristãos da tradicional Vila Nova.

Não precisamos ir além dessa cena no julgamento para constatar a principal denúncia levantada por Walmir Ayala em seu romance: os malefícios de uma comunidade machista, com uma religiosidade de moral maleável, e profundamente hipócrita. Hipócrita, sim. É impossível não ver os murmurantes senhores do tribunal nos "bons pais de família" a quem a doméstica Flora tem que se entregar na casa da patroa francesa. Diz ela a Bianca:

"É tanto homem por noite... tanto. Se eu pudesse lhe dizer quem tem andado pela minha cama. Homem assim. Importantes. Eles me pedem de não contar nada, por nada deste mundo. (...) A gente termina por odiar os homens. O que a gente tem que fazer, sem querer! Depois eles vão embora. Bons pais de família".

Ao padre Nilo, Bianca não entrega os pontos. Quando indagada como ficará sua alma em tal situação, a jovem retruca: "Não sei o que ela é [a alma]. Mas o meu corpo eu sei. Ele [Sebastião] me tem ensinado na freqüência da nossa loucura o que é o meu corpo". De fato, a filosofia hedonista de Bianca produz uma visão do ideal bem diferente daquela da doutrina do padre ― ela conclui em certo ponto que "um paraíso sem Deus era mais fácil". Quer dizer, seria impossível existir um lugar bom que ao mesmo tempo possuísse um pecado definido e pronto para ser empregado para (des)qualificar qualquer ato de prazer. Essa divergência de pontos de vista justifica o silêncio do padre Nilo durante o processo do marido assassino.

Piero, o pai de Bianca, em nenhum momento é alheio aos dramas de... Vicente. Antes de ir flagrar a mulher com o amante, o incrédulo Vicente vai ter com o sogro, na esperança de que este possa esclarecer a situação com um "nada disso é verdade", ou "não se preocupe, Bianca não seria capaz disso que andam dizendo". Mas qual o quê. O que Piero diz é que é tudo verdade ― "Eu não a eduquei para isto, mas é verdade. Todo o mundo sabe. Não sou eu que vou negar". Vai além e determina o fim trágico da filha ao dar um revólver ao genro ― "Você deve fazer o que qualquer homem de dignidade em seu lugar faria". E uma página depois, para incentivar o irresoluto Vicente: "Mas não creio que é só seu [o problema]. Ela ainda é minha filha. E eu não quero que meu nome esteja ligado a uma vagabunda".

Ao término da leitura, fiquei pensando. E se, em vez de encontrar a esposa e o amante em situação inexplicável, Vicente tivesse tido a certeza da traição por um outro meio, digamos, lendo no diário da esposa (se existisse um) os detalhes de uma noite de amor torrencial entre os dois? Nesse caso, e supondo-se que Sebastião tivesse se mudado para uma cidade contígua, iria Vicente atrás dele para lhe tirar a vida? Ou se satisfaria em matar a mulher ali próxima e dar o caso como encerrado, pouco importando a participação de Sebastião no "crime"?

Porque pelos fatos narrados por Flora, pelo comportamento de Piero e padre Nilo, pela situação de prisioneira das infelizes esposas de Vila Nova e as atitudes pouco ortodoxas de seus bons maridos e "bons pais de família", a impressão inescapável é que a culpa, agora e sempre, por um adultério é da mulher, primeira ou unicamente. Crime passível de morte, prescrita por uma tradição que não logrou influenciar uma constituição nacional, mas para a qual nunca se lixou mesmo.

Começar e praticamente acabar de ler um romance com esse conteúdo no mesmo dia em que fiquei sabendo do caso da mulher assassinada na periferia de Teresina, me fez arrepiar um pouco, ao pensar no grau da barbárie brasileira, presente em todo lugar, no século passado e no século presente, da capital do Piauí ao interior do Rio Grande do Sul, da ficção à ― pior, sempre pior ― realidade.

Para ir além





Daniel Lopes
Teresina, 17/6/2008

 

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