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Sexta-feira, 20/6/2008
Amor e relacionamentos em tempos de transição
Luis Eduardo Matta

Provavelmente não existe tema tão universal, perene, fecundo e inquietante quanto o amor. Refiro-me aqui, naturalmente, ao amor na sua acepção consagrada, isto é, o amor romântico, entre duas pessoas apaixonadas. O impulso amoroso é parte indissociável da existência e, por conta de seu poder ilimitado e, via de regra, superior ao da razão humana, nos transforma, a todos, em reféns dos seus caprichos e urgências, ao mesmo tempo em que nos veta o direito de assumir plenamente as rédeas de nossas vidas, descartando, desde sempre, a opção de qualquer pessoa por um cotidiano regido por uma estabilidade ditada pela razão e pela sensatez permanente e absoluta. Amar ou apaixonar-se nem sempre é agradável. Torna as pessoas cegas, deixa o coração sôfrego e descompassado e pode, inclusive, levar algumas almas mais sensíveis à destruição. Ainda assim, a emoção é o que há de mais legítimo na existência humana e não consigo conceber uma vida em que ela não esteja fortemente presente. A vida sem emoção é o vácuo, é não se maravilhar com as coisas, é perder, também, a capacidade de transmitir ao próximo o melhor de si. Enfim, é o nada. Existe perspectiva pior do que essa? Quando penso nisso, sempre recordo Faulkner e sua célebre frase, que é uma das que vêm, há muitos anos, norteando a minha vida: "entre a dor e o nada, escolho a dor".

Nos meses que correm ― estamos em meados de 2008 ― tem-se falado muito no ideário e no legado da década de 1960, simbolizada pelo mítico ano de 1968 e, particularmente, não vejo como discutir as mudanças originadas naquela época, sem mencionar as operadas nas relações afetivas. Os anos 60 deram início ao ocaso de sucessivos séculos de rigidez social e hipocrisia, sobretudo em relação às mulheres e libertaram a sociedade de uma série de grilhões que a aprisionavam e asfixiavam em regras ferozmente repressivas, tão inúteis quanto danosas. Tudo em nome de uma noção débil de moral e de virtude, que podia premiar com todas as honrarias sociais um canalha desprezível, desde que este se apresentasse como um paradigmático pai de família, com bom emprego, aliança no dedo e presença certa nas missas dominicais, ao mesmo tempo em que era capaz de arruinar a reputação de uma mulher de caráter, apenas porque ela cometeu a ousadia de abandonar um cônjuge violento, promíscuo ou explorador, em nome da própria dignidade. Fico quase sempre pasmado quando ouço pessoas suspirarem com emocionada nostalgia por este passado de falsas boas maneiras, como se a vida de então fosse a versão terrena do paraíso e nela não houvesse problemas graves na ordem social, sobretudo num país injusto e culturalmente enfermo como o Brasil.

Por outro lado, é com um espanto ainda maior, um espanto que beira o pânico, que contemplo a sociedade atual ― vulgarizada e destituída de quase todos os valores elevados ― e constato no que as lutas libertárias deflagradas na década de 1960 resultaram. O que me consola e dá esperanças é saber que estamos apenas no começo deste processo de mudanças iniciadas há meio século ― afinal, o que representam míseros cinqüenta anos em todo o conjunto da história humana? ―, e que todas as revoluções que o período simbolizado por 1968 nos legaram encontram-se em curso. Ou seja: é temerário falar na revolução sexual e comportamental e nos movimentos de afirmação feminina ou racial como se estes já houvessem acontecido ou, ao menos, atingido o seu ápice e a sociedade estivesse, agora, colhendo os frutos de algo já consolidado. A verdade é que estamos em plena revolução, vivendo um conturbado período de transição, cientes de que toda mudança social, para ser concreta e durável, ocorre gradualmente, ao longo de décadas, muitas vezes de séculos, ainda que ela tenha se originado da mais ruidosa e arrebatadora manifestação popular.

A evidência mais perceptível desta transição é, a meu juízo, a crise que se instalou de alguns anos para cá (não saberia precisar quantos, ao certo), nos relacionamentos amorosos entre homens e mulheres. Uma crise que, por tudo que tenho observado, vem aumentando com o passar do tempo, gerando um turbilhão incessante de angústias e inseguranças em ambos os lados, sobretudo no feminino, onde a sensibilidade é mais florescente, melhor trabalhada e menos reprimida. Uma breve visita a qualquer banca de jornais nas nossas grandes cidades é suficiente para nos comprovar isso. É impressionante a quantidade de revistas à venda todos os meses, todas elas repletas de reportagens, artigos, entrevistas, textos confessionais, testes de personalidade etc., onde a infalível trinca amor-sexo-relacionamentos é exaustivamente abordada, sem que o tema sequer chegue perto de se esgotar. Essas publicações, é lógico, são dirigidas, em sua maioria, às mulheres, já que nós, homens, preferimos, como de hábito, lacrar nossas emoções e fingir para o mundo que nada está acontecendo conosco, evitando, assim, externar sinais de fragilidade e acabar comprometendo a nossa imagem perante a sociedade ― que ainda nos cobra uma postura de força, liderança e firmeza inabalável ― e, por conseqüência, nossa própria auto-estima. Se essas revistas vendem o que vendem ― e elas vendem cada vez mais, pelo que me informam os jornaleiros com os quais costumo conversar ― é porque as dúvidas referentes a relacionamentos amorosos encontram-se incomodamente em alta, mesmo com toda a abertura propiciada pelos dias atuais. Era de se esperar que, com o considerável abrandamento da rigidez de costumes verificado nas décadas recentes, mulheres e homens estivessem mais seguros, felizes e realizados afetivamente. Era, aliás, o que previam os visionários dos anos 60. Mas não é isso o que está acontecendo, pelo menos não na escala desejada, e a pergunta é: por quê?

Venho refletindo muito sobre esse assunto ao longo dos últimos anos e, embora não tenha, ainda, chegado a uma posição conclusiva ― o que, convenhamos, é uma tarefa difícil, dada a complexidade da alma humana ―, consegui levantar algumas modestas teorias. A principal delas refere-se à própria revolução feminina na sociedade e aos seus desdobramentos. Antes que alguém me interprete mal, afirmo que sou feminista desde que me entendo por gente, defensor número um das mulheres e entusiasta declarado da sua presença ativa e valorização no meio social e no mercado de trabalho, a ponto de, por exemplo, sempre ter preferido trabalhar com mulheres. Ocorre que o movimento feminista, ao alterar o perfil da mulher ― sobretudo o da mulher urbana ―, dando-lhe voz fora do ambiente doméstico, um papel cada vez mais decisório nos rumos da sociedade e autonomia financeira, distanciou-a do antigo paradigma de comportamento, no qual ela esteve confinada por séculos, sem que semelhante processo de distensão e mudanças psicossociais tenha ocorrido com o homem, que permanece atado a um modelo desgastado e imbuído de conceitos bastante semelhantes aos de mais de meio-século atrás, de uma época na qual o feminismo ainda não havia ganhado o seu grande impulso. O resultado disso é que, generalizando um pouco, temos, hoje, mulheres do século XXI relacionando-se com homens da década de 1950.

A partir do momento em que um padrão social consagrado secularmente é posto em xeque e outro começa a ser construído em seu lugar, é natural que se crie uma espécie de limbo. É como se habitássemos uma casa que se tornou inviável para moradia e precisássemos erguer outra no mesmo terreno, adaptada às nossas novas demandas. É mais ou menos isso o que está ocorrendo nos relacionamentos humanos. Enquanto algumas pessoas se iludem ao supor que a nova casa já está erguida, o que eu percebo é que a velha nem acabou de ser demolida, embora os novos alicerces já estejam visíveis. Isso explica muita coisa. Explica, por exemplo, a realidade contemporânea, com sociedades inteiras alijadas dos mais básicos códigos de civilidade, reféns da violência, da falta de respeito e do culto insensato ao superficial e ao banal. Se vivemos esta situação, é porque os valores antigos foram questionados, sem que outros tenham se sedimentado inteiramente. E explica, sobretudo, por que homens e mulheres se encontram em conflito, separados, muitas vezes, por um abismo de intolerância e de incompreensão mútuas. O homem médio contemporâneo, por não haver acompanhado a evolução da mulher, não consegue dialogar com ela de forma satisfatória, não é capaz de compreender e admirar essa nova mulher. As mulheres, por sua parte, tornaram-se mais exigentes. Muitas se recusam, acertadamente, a permanecer em relacionamentos vazios e frustrantes, com maridos ou namorados que, gradualmente, vão se acomodando a uma rotina insossa e egoísta, privando suas companheiras, do carinho, da atenção, da cumplicidade e do diálogo, que elas tanto valorizam. Outras, por medo da solidão e da perspectiva de abandonar a segurança de uma relação e encontrar alguém ainda pior pela frente, acabam se resignando e passam a viver uma vida pela metade. Uma frase que resume bem essa segunda opção, que é mais comum do que muita gente imagina, é o título, engraçadíssimo e bastante espirituoso, de um livro da argentina Viviana Gómez Thorpe, que deu origem a uma peça de grande sucesso, chamado Não sou feliz, mas tenho marido.

A crise, contudo, tem mão dupla. Afinal, se, pela ótica feminina, o sexo masculino tem deixado a desejar, as mulheres, a juízo dos homens, também possuem sua parcela de responsabilidade pelo atual panorama de desencontros, por, muitas vezes, idealizarem além da conta um pretendente ideal que, dificilmente, irão encontrar na dura vida real. Isso sem contar a postura de algumas delas, muitas das quais independentes financeiramente e com uma carreira estabelecida, que insistem em exigir de seus parceiros um comportamento antigo, que remonta aos tempos em que o homem era o provedor absoluto da família e competia à mulher cuidar da casa e da educação dos filhos (é bem verdade que, proporcionalmente, as mulheres continuam ganhando menos do que os homens e são mais profissionalmente desvalorizadas, embora este quadro, felizmente, esteja mudando). Por outro lado, são igualmente numerosos os homens casados que se recusam a assumir tarefas domésticas, tendo a mulher que se desdobrar em várias para dar conta da trinca casa-trabalho-filhos. Há, ainda, os casos de homens que se sentem diminuídos porque ganham menos do que suas namoradas ou esposas, e, também, o de mulheres que passam a desvalorizar os seus namorados ou maridos porque eles, de repente, passaram a ganhar menos do que elas. Enfim, a lista é interminável e retrata bem o atual conflito de valores, no qual as pessoas são socialmente cobradas muito além do tolerável e parecem desnorteadas, ora aferrando-se às conquistas da modernidade, ora mirando saudosamente o passado. Trata-se de uma equação intrincada que o tempo, creio, se encarregará de decifrar na medida do possível, uma vez que as relações humanas não têm uma lógica matemática e, muitas vezes, apresentam as mais gritantes contradições.


As protagonistas de Sex and the city

Num texto publicado em 2006, afirmei que é possível viver feliz sozinho, desde que esta seja uma decisão espontânea e movida por um desejo genuíno. Isto porque a solidão compulsória, imposta à revelia pelas contingências do destino, é uma catástrofe existencial, já que, neste caso, uma pessoa empenhada na saudável e necessária busca pelo amor não consegue encontrar alguém para partilhar satisfatoriamente sua vida com a intimidade que somente um relacionamento amoroso pode proporcionar. Ou consegue, depois de passar por muitos barrancos. Uma das razões para o enorme sucesso do seriado norte-americano Sex and the city, recentemente lançado em versão cinematográfica, é a imediata identificação que muitas mulheres, em inúmeros países, estabeleceram com as personagens, o que demonstra que a crise nos relacionamentos não está circunscrita ao Brasil ou à cidade de Nova York, onde a série é ambientada. Em Sex and the city os dilemas, conflitos e desejos da mulher contemporânea, representada com maestria pelas protagonistas ― a jornalista Carrie Bradshaw, a marchande Charlotte York, a relações-públicas Samantha Jones e a advogada Miranda Hobbes ―, são expostos de forma glamourosa, inteligente e espirituosa, e sempre com um lastro na realidade. Como escritor, fico surpreso ao ver como a série foi bem estruturada e como as quatro personagens principais foram minuciosamente construídas para representar, cada qual a seu modo, alguns arquétipos da mulher urbana contemporânea. Moderna, independente, inteligente, versátil, cheia de atitude e personalidade, por vezes mordaz, e ao mesmo tempo, meiga, sensível, insegura, às voltas com mil dúvidas e, acima de tudo, em busca da realização amorosa e profissional. Por meio das aventuras e desventuras de Carrie, Charlotte, Samantha, e Miranda, é possível desvendar um pouco os meandros da alma e do imaginário femininos (muito embora, é bom frisar, a série seja pequena para comportar a complexidade da mulher real) e constatar que, a despeito de todas as notáveis mudanças ocorridas nos últimos tempos, quase toda mulher conserva dentro de si uma porção romântica incurável; e que foi essa porção romântica que evitou a extinção prematura da raça humana. Compreender a mente feminina, múltipla e fascinante, não é uma epopéia tão espinhosa para nós, homens, como se convencionou acreditar.

"Compreender". Essa é, a meu juízo, a palavra-chave, capaz de solucionar muitos dos conflitos inquietantes desta modernidade desgovernada. Compreender o outro, aceitando-o como ele é, e não sendo tão implacáveis num julgamento precipitado e permeado pelas nossas referências pessoais. Compreender esse mundo em que vivemos, e o momento histórico que estamos atravessando, olhando para trás e vendo de onde estamos vindo a fim de ter uma idéia de para onde estamos caminhando. Compreender que todos temos limites, que as pessoas estão muito longe de ser perfeitas, que todos passamos por momentos de fraqueza e desvario, que experimentamos revezes, que nem sempre somos sublimes e tampouco estamos permanentemente prontos para corresponder a tudo o que as pessoas esperam de nós. Para que um relacionamento frutifique, há que ter tolerância, maturidade, não jogar tudo para o alto no primeiro desentendimento, ter consciência que mesmo os casamentos mais duradouros passaram por momentos de crise e, nem por isso, naufragaram. E é necessário, acima de tudo, compreender a nós mesmos. Ter ciência dos nossos defeitos e qualidades, conhecer as nossas limitações e respeitar a nossa forma de ser e de pensar. Quem não se compreende, não está apto a compreender os demais. Uma vez que estamos desbravando um período de transição que não deverá acabar tão cedo, seria saudável operarmos, também, uma transição dentro de nós. Contestando algumas certezas, deixando de olhar tanto para o nosso umbigo e lançando um olhar atento e generoso para a sociedade ao nosso redor, fazendo algumas concessões, nos esforçando para não deixar apodrecer aquilo que a vida tem de mais precioso, que são as relações afetivas; e incluo aí as amizades e as relações familiares. Mas, acima de tudo, usufruindo da liberdade que a modernidade generosamente oferece e que muita gente não sabe aproveitar; uma liberdade que permite que nos preservemos daquilo que não nos agrada e que nos dá a chance de escolher o nosso próprio caminho. A transição pode ser muito boa, desde que a encaremos da forma adequada.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 20/6/2008

 

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