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Segunda-feira, 14/7/2008
Biografias da discórdia
Pilar Fazito

Famílias numerosas sempre têm um decano que deveria escrever sua biografia, deixar para as gerações futuras um registro daquilo que viveu. Chega certa época em que eles levam mesmo a sério o "você deveria escrever um livro" e lá pelos 80 ou 90 anos se dispõem a narrar um pouco de sua história a fim de que algum filho, neto ou bisneto resolva ajudar na tarefa de organizar tudo em forma de livro. E aí começam os problemas...

O passado do aspirante a autor pode envolver guerras, fome, seca, espionagem... Enfim, pode se tratar de um verdadeiro Indiana Jones, mas sabem como é: em casa de ferreiro, o espeto é de pau. A família nunca dá o devido valor àquilo que o sujeito viveu. Não dá e isso é compreensível, afinal, ela conhece o lado real do personagem, o cotidiano, as manias, a unha encravada e a rabugice, em suma, os defeitos que destituem todo o romantismo ou o heroísmo daquele que figurará nos anais do clã. Celebridades, top models e heróis só são perfeitos para quem não tem que conviver diariamente com eles.

A moda do registro biográfico de decanos de famílias numerosas está em ascensão. Famílias anônimas, que, até então, não tinham nenhuma visibilidade no meio literário agora começam a por as memórias no papel. Ou nos blogs. Eu mesma já ajudei a organizar duas biografias dessas. O trabalho em si é bem interessante, mas o mais divertido (para quem está de fora) é assistir à discórdia que se instaura entre os membros da família com a publicação do vade-mécum. Uma verdadeira e tardia terapia familiar.

Não é fácil escrever, nem ler, sobre a história de vida de uma pessoa da qual fazemos parte. Ou porque não nos identificamos com o que é narrado - e aí achamos que nosso ancestral já está mais prá lá do que prá cá - ou, ao contrário, por nos identificarmos demais e acharmos que há toda uma exposição desnecessária e proposital dos outros parentes. No primeiro caso, é comum os filhos, netos, bisnetos e agregados se esconderem de vergonha do público que, porventura, lerá o livro. No segundo caso, mais ainda. A briga que remonta às diferenças e intolerâncias que foram sufocadas por anos dentro do aconchegante seio familiar voltam à tona. Só para ilustrar a coisa: o segundo livro que ajudei a organizar tinha uma capa vermelha e, por conta disso, recebeu nos bastidores da edição o divertido apelido de "o livro vermelho da discórdia".

O leitor-familiar tende a defender a bandeira de uma suposta verdade que não existe. Ele não aceita muita coisa que é publicada por um irmão, marido, tio, sobrinho, ou por uma mãe, irmã, esposa etc. porque, muitas vezes, o ponto de vista adotado não bate com o seu.

A família do biografado tem que se lembrar de certas obviedades que passam despercebidas no calor do momento. Uma delas é que há preferências e facilidade de diálogos entre alguns membros e entre outros, não. Além disso, é claro que o autor prefere falar dos atos heróicos e jogar suas falhas humanas debaixo do tapete narrativo. E daí? Quem é o leitor para julgá-lo? Não gostou da versão dos fatos, que escreva e publique outra.

O senso comum conceitua a biografia como um gênero literário que se baseia em acontecimentos reais da vida de uma pessoa. Entretanto, ela se aproxima mais da ficção do que se pode imaginar. Como observou o Moacyr Scliar certa vez, o ficcionista é alguém que acredita verdadeiramente nas mentiras que conta.

A sociedade ainda valoriza uma verdade absoluta que Popper já dizia não existir. Em relação a biografias, então, só o que se pode dizer é que somos todos ficcionistas. Não narramos o que aconteceu conosco, mas a impressão que guardamos daquilo que aconteceu conosco. E aí despejamos traumas, reações, medos, orgulhos, glórias e todo um turbilhão de emoções próprias daquele que escreve em primeira pessoa.

A discórdia gerada pelas biografias poderia ser evitada se os leitores aceitassem isso como chave para a leitura do texto. Não cabe ao autor se censurar ou reprimir o que pensa em função da possível reação dos que estão a sua volta. Isso também vale para muitas obras literárias assumidamente ficcionais: se todo escritor produzisse texto "pisando em ovos", não teríamos mais o que ler.

Conheço um autor que sofreu com o silêncio de um amigo por mais de vinte anos, depois de o dito cujo ter se identificado num de seus romances. Não bastou que o nome do personagem fosse outro e estivesse inserido num universo caricaturalmente fictício. O homem identificou-se com as manias de um dos personagens, levou isso para o lado pessoal, julgou que fosse uma atitude pejorativa e ninguém conseguiu fazê-lo mudar de idéia. Depois de tirar satisfações com o escritor, virou a cara e ficou esse tempo todo sem lhe dirigir palavra.

O escritor é um caricaturista verbal. Ele se serve das características físicas e comportamentais das pessoas que observa e manipula isso quando constrói personagens, exagerando, amenizando, modificando, em resumo, brincando de Deus. Se ele não disser "Fulano, esse meu personagem é você", o leitor deve se questionar bastante antes de tirar conclusões que, muitas vezes, podem ser sinal de mania de perseguição ou de presunção. Somos mais de seis bilhões de pessoas no mundo, o que o leva a crer que o gago, o calvo, ou aquele personagem que caiu num tonel de piche seja uma descrição sua?

Quando se trata de uma biografia, o universo a ser narrado é reduzido drasticamente. Fica mais difícil o autor usar a desculpa dos "seis bilhões de habitantes no planeta" para aplacar a ira do cunhado que se reconheceu no episódio do casamento do primo, quando foi pego no flagra ao proporcionar uma doce despedida de solteira para a noiva. De todo modo, cabe aos leitores não levarem tudo tão a sério. Ou então, não darem motivo para uma exposição negativa.

Para quem ainda pensa em mexer no passado coletivo e registrar as memórias, vai uma dica: peça auxílio de alguém de fora do clã. Alguém isento de juízo de valor, que não questione aquilo que será dito ou aquilo que será omitido. Ainda assim, esteja preparado para as discussões.

Biografias familiares tendem a atiçar o bate-boca nas festas de natal. Há famílias que lidam bem com esse tipo de estresse: xingam, gritam e, no dia seguinte, fazem as pazes, pedem desculpas, choram de emoção para, em seguida, brigarem de novo e voltarem às pazes novamente. Mas nem todas possuem esse ciclo dramático tarantelesco. No caso de famílias que guardam mágoas e que não estão preparadas para esse registro histórico - sofrido, mas recompensador -, é bom distribuir os presentes antes do vinho e do champanhe e sair da festa de fininho, antes mesmo da sobremesa.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 14/7/2008

 

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