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Segunda-feira, 21/7/2008
Não ria!
Eduardo Mineo

O livro de Jó é, de longe, o melhor livro que li até agora na Bíblia. Eu sei que o que importa de verdade no livro é a demonstração de fé de Jó, mas como eu não me importo muito com o que importa de verdade, fico cismando com a desnecessidade de tudo aquilo. O Diabo, como sempre, é uma figura irresistível. Deve ser o personagem mais interessante que o homem já inventou, talvez depois apenas do velho príncipe Bolkonsky em Guerra e Paz, e com certeza o único com senso de humor na Bíblia. Acho engraçadíssima a seriedade quadradona de Deus e sua pequena dificuldade em entender as piadas do Diabo e tal. Jó, por exemplo, era ultra-fiel a Deus e todo mundo sabia disto. Deus sabia. O Diabo sabia. E o Diabo só fez uma piadinha inofensiva sobre isso, que perto das minhas piadas iria parecer alguém tentando ser engraçado no GNT. Ele diz algo do tipo "Jó é fiel, mas bate nele com uma ovelha pra Você ver". E Deus leva excessivamente a sério, não percebendo o tom irônico do Diabo. É então que manda dar umas porradas no Jó só pra ver qual que é a do coitado. Sem brincadeira, dá vontade de sacudí-Lo gritando "Era uma piada, porra! Uma piada, You bloody freak!"

Depois que matam toda a família do Jó e destroem tudo que ele tem só pra Deus ver qual que é a parada, tudo é devolvido em dobro ao Jó e, ao que parece, geral fica feliz com essa solução ― não me ficou claro se Deus duplica os parentes também, mas imagino que nem Ele seria capaz da crueldade suprema de duplicar uma sogra, acho. E, bom, geral fica feliz porque o Diabo ainda não tinha inventado os danos morais. Um bom advogado ― outra invenção muito curiosa do Diabo ― e Deus perderia todo o universo nessa brincadeira. Precisava mesmo?

De qualquer forma, o livro de Jó rendeu pelo menos a melhor cantada já feita na história do cinema, em Manhattan, de Woody Allen, que ele diz à Mariel Hemingway que ela é a resposta de Deus para Jó:

You're God's answer to Job. You would have ended all argument between them. He'd have said "I do a lot of terrible things but I can also make one of these." And Job would've said "OK, you win."

(Traduzindo: "Você é a resposta de Deus para Jó. Você acabaria com toda a discussão entre eles. Ele diria 'Eu faço muitas coisas terríveis, mas posso também fazer isto' ― e aponta para a garota. E Jó diria 'Ok, você ganhou.'")

Mas, entretanto, minha idéia era falar sobre um exagero no uso da seriedade. Prossigamos.

Se vocês não sabem de quem eu vou falar agora, tudo bem fingir que sabem, porque não há nada demais nisso, mas existem pessoas que escrevem muito melhor do que eu ― sério, existem mesmo! ―, que sabem muito mais do que eu e que, em geral, são muito melhores do que eu, mas que porre ler o que essa gente escreve. Usam a seriedade de uma forma tão equivocada que muitas vezes até me pergunto se estão falando sério mesmo. Lendo o sujeito, dá pra ver que o cara tem razão, que é um tipo incontestável e tudo mais, e que é óbvio que ele tem um conhecimento profundo sobre todas as coisas que eu não tenho, que ele comenta sobre tudo aquilo que eu gostaria de comentar, sempre tão bem articulado e tão perfeitamente bem escrito, mas, bicho, relaxa, suas frases parecem pesar uns 50kg.

Você vai lendo, vai lendo e seus olhos vão caindo, caindo, até que dá de cara com a mesa de tanto peso que o escritor colocou em suas frases. Fico impressionado comigo mesmo quando consigo virar uma página dessa.

Vejam, estou tentando não banalizar muito a seriedade, ou não deixá-los presumir que tenho alguma preguiça de exercitar os olhos em algum tipo comovente de supino ocular, mas será que não é possível ser sério sem parecer que vai de repente falar algo terrivelmente desagradável como, digamos, contar a morte de alguém ou discutir o existencialismo marxista? Tolstói, por exemplo. Mil páginas solenes de Tolstói exigem o mesmo esforço para se ler umas duzentas páginas de Evelyn Waugh, umas duas de Sartre. E isso deve ter alguma relação direta com a qualidade da pessoa que escreveu, não apenas por ela estar certa ou saber das coisas, mas por conseguir estar certa de um jeito melhor.

Eu, por mim, seria mais sério na medida em que acho favorável. Queria ter aquele jeitão do Omar Sharif em Doctor Zhivago, com uma farda cheia de medalhinhas, uma espada, bigode, essas coisas. Ele está sempre sério e mesmo assim é um barato ser daquele jeito. Acontece que, no meu caso, tenho uma percepção crítica demais e poucas coisas conseguem se pôr diante dos meus olhos e escapar impunes a isso. Seus detalhes vão sendo ridicularizados um a um de todas as formas que posso imaginar e claro que é bem difícil para qualquer pessoa manter a seriedade enxergando tudo de maneira distorcida e debochada como num eterno Corra que a polícia vem aí. A primeira coisa que me veio à mente quando comecei a ler o livro de Jó foi a possibilidade de uma edição para jovens no estilo MSN, que seria basicamente intercalar os diálogos entre Deus e Jó por "hauehaue". E até Deus deve ter rido desta.

Eduardo Mineo
São Paulo, 21/7/2008

 

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