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Sexta-feira, 15/8/2008
As duas divas da moderna literatura romântica
Luis Eduardo Matta

Uma das coisas das quais me orgulho como leitor é de jamais haver alimentado preconceitos contra qualquer tipo de literatura. Posso ter conceitos e opiniões sobre determinado livro, assim como toda pessoa que leia com freqüência, mas jamais me deixei seduzir pela armadilha de proferir sentenças genéricas e definitivas, para o bem ou para o mal, sobre este ou aquele autor, sobre este ou aquele gênero literário, sob pena de cometer injustiças e, principalmente, falar asneiras ― sobretudo, o que é muito comum, quando isso é feito sem que se tenha lido os livros em questão.

Essa postura talvez tenha origem na minha formação leitora, que aconteceu de forma caótica, na mais benfazeja acepção do termo. A leitura infiltrou-se na minha vida sem pompa, com naturalidade e, desta forma, fui navegando ao sabor das histórias que me chegavam às mãos. Desde a infância a leitura tem sido uma das minhas principais fontes de lazer. As descobertas foram e continuam sendo constantes e, muitas vezes, deliciosamente desconcertantes.

Uma das mais recentes aconteceu há cerca de dois anos e, confesso, me surpreendeu, inclusive porque não posso ser considerado um leitor potencial deste segmento ficcional e, certamente, uma campanha promocional com o intuito de divulgar esses livros passaria longe de atingir pessoas como eu. No entanto, fui atingido, e de uma das formas mais triviais: por meio da recomendação de pessoas próximas. Refiro-me, é lógico, às histórias românticas destinadas ao público feminino, nascidas do talento e da sensibilidade de inúmeras escritoras, a maioria de língua inglesa, como Helen Van Slyke, Barbara Taylor Bradford, Danielle Steel, Eileen Goudge, Diana Palmer e, sobretudo, as aclamadas Nora Roberts e Barbara Delinsky, cujos livros, que tenho lido com alguma regularidade ultimamente, me estimularam a escrever estas linhas.

O contingente de leitores que se consideram "sérios" e que, por conta disso, torcem solenemente o nariz para essas autoras é enorme. Muitos deles nunca leram uma página dos livros que elas escreveram e fazem cara feia por pura pose. Pois eu lhes digo: não fazem idéia do que estão perdendo. Posso afirmar isso sem o menor constrangimento, pois já li e reli muitos dos grandes clássicos da literatura universal e nacional, incluindo aí obras de Homero, Cervantes, Balzac, Tolstói, Thomas Mann, Lima Barreto e Machado de Assis e lamento informar que quem tentar me acusar de ser um leitor menor vai quebrar a cara. A verdade é que, ainda que não façam parte do que se entende por alta literatura, esses romances, caracterizados pelo teor açucarado da narrativa e premiados por fartas doses de dramas, conflitos sentimentais, intrigas familiares, e, em alguns casos, suspense, são muito bons dentro do que se propõem; se não primam pelo preciosismo de estilo, pela pureza e o acabamento da linguagem e, tampouco, pela profundidade e pelo requinte de pensamento, característicos das grandes obras, eles nos emocionam e, sim, nos induzem à reflexão a partir desta matriz sentimental, comum a todos nós. Faço essa declaração com segurança porque eu próprio descobri empiricamente ao longo dos anos que tudo, do mais banal ao mais sofisticado, é capaz de nos levar a refletir, se estivermos aptos a pensar e abertos a mudanças. Não me refiro somente à arte. Muitas vezes, estamos andando casualmente pela rua, num dia comum, quando, inadvertidamente, nos deparamos com uma cena prosaica que, a olhos mais desatentos, costuma passar despercebida, mas que, a um observador aplicado, pode disparar a centelha necessária para deflagrar uma jornada de questionamentos aprofundados sobre a vida, que conduzirá a um processo de lapidação e elevação existencial. Numa época em que os relacionamentos afetivos e sociais andam tão desgastados, esvaziados e conflituosos e os sentimentos encontram-se tão desvalorizados, romances cuja matéria-prima essencial é a emoção certamente ocupam, na vida de muita gente, um espaço precioso como condutores de percepções novas, enquanto se incumbem de manter os sentimentos vivos e proteger, por meio do universo onírico e sedutor da ficção, os corações da barbárie da vida exterior.

Embora alguns homens tenham se aventurado com êxito por essa literatura romântica, foram as mulheres as responsáveis por consagrar o gênero ao redor do mundo, talvez por serem elas, historicamente, as guardiãs do sentimento na sociedade, além de plenas conhecedoras de todas as nuances do imenso repertório emocional humano. As histórias de Nora Roberts e Barbara Delinsky são avidamente lidas em dezenas de países e idiomas, o que demonstra que os conflitos narrados por elas encontram ressonância em leitores e leitoras em recantos os mais diversos e são, portanto, universais. Estima-se que a cada quatro minutos um livro de Nora Roberts seja vendido só nos Estados Unidos, lembrando que, além das histórias românticas, Nora também escreve, sob o pseudônimo de J. D. Robb, a popular "Série Mortal", de romances policiais com ambientação futurista. Eu, por exemplo, não tenho vergonha alguma em dizer que leio esses livros, inclusive porque, como escritor, sinto-me na obrigação de ler tudo e, como alguém interessado pelos meandros da alma, me fascina a complexidade do universo feminino, que é tratado de forma sensível e realista, sem malabarismos, por suas autoras. Aos meus amigos homens, que vivem se perguntando como pensam as mulheres, sempre recomendo encontrar as primeiras respostas ― não todas, frise-se ― nesses livros. E ainda que eles não revelem tudo, uma vez que a mente feminina possui uma multiplicidade impossível de ser sintetizada de forma genérica, constituem um razoável ponto de partida, ao nos ajudar a, ao menos, sentir muitos dos seus mecanismos e a aprender a compreendê-los, deixando de encará-los com estranheza e perplexidade.

Não li, é lógico, nem uma fração dos livros de Nora Roberts e de Barbara Delinsky, mesmo porque a primeira já lançou mais de 150 títulos e a segunda, mais de 60. Ainda assim, me arrisco a deixar registradas aqui algumas breves impressões sobre eles, começando pelas protagonistas de uma e de outra, cujos perfis guardam diferenças perceptíveis. As heroínas de Nora são, em geral, mulheres afetivamente mais independentes, ousadas, donas absolutas da própria vida, desinibidas e, por vezes, mordazes e irascíveis, que conciliam tais características com sentimentos românticos de uma pureza e uma ternura comoventes. Nora retrataria, portanto, um tipo de mulher cada vez mais comum, investidas de um comportamento em sintonia com as demandas da modernidade, em que atitudes e sentimentos, por vezes contraditórios, se fundem com naturalidade mostrando que a feminilidade e o romantismo não constituem um obstáculo para a emancipação da mulher e para uma postura mais ativa em todos os segmentos da vida, inclusive a amorosa e/ou sexual. Barbara Delinsky, por sua vez, constrói protagonistas um pouco mais conservadoras, embora igualmente fortes e autônomas. São mulheres de conduta mais tradicional, menos ousadas no plano afetivo, muitas vezes casadas e com filhos, que lutam para superar frustrações e preconceitos, enquanto buscam a felicidade na realização amorosa e na segurança de um lar e tentam harmonizar as vidas doméstica, afetiva e profissional. É certo que ambos os arquétipos de personagens encontram fartos lastros na realidade de muitas mulheres, assaltadas por dilemas semelhantes e ainda à procura de um lugar na sociedade em que possam manter sua autonomia sem abrir mão da essência feminina.

As tramas também diferem um pouco, a começar pelo suspense, mais presente nas histórias de Nora Roberts, como Lua de sangue, embora Barbara Delinsky, vez por outra, também lance mão do recurso, como em Paixões perigosas. E é justamente o suspense o que mais chama a atenção em duas das obras recentemente publicadas pela dupla no Brasil: A vizinha, de Barbara (Bertrand Brasil, 2008, 350 págs.) e A villa, de Nora (Bertrand Brasil, 2008, 546 págs.), os quais li, gostei e recomendo.

A vizinha conta a história de Amanda e Graham O'Leary, um casal bastante apaixonado e vivendo uma união promissora e harmoniosa, que, por uma razão qualquer, não consegue ter filhos. A angústia da situação é agravada quando Gretchen, a jovem e bela viúva de um dos vizinhos na bucólica rua sem saída onde eles moram, aparece grávida de poucos meses, sendo que o marido, décadas mais velho, está morto há um ano. O elemento suspense, neste caso, é descobrir quem é o pai da criança, dúvida que atormenta não somente Amanda, como a duas de suas amigas mais próximas, Karen e Georgia, também casadas (porém, com filhos) e também moradoras da rua, que vêem seus relacionamentos entrar em crise com a gravidez da misteriosa vizinha. Para complicar, Amanda ainda precisa lutar com as pressões da numerosa família irlandesa de Graham, que não se conforma com o fato de ela não conseguir conceber e com os desdobramentos causados pelo suicídio de um dos alunos da escola onde trabalha como psicóloga.

Já em A villa, a trama, mais glamorosa, tem sua ação centrada em duas conceituadas vinícolas da Califórnia ― Giambelli e MacMillan ― que resolvem se fundir numa só empresa. Trata-se, mais do que tudo, de uma formalidade comercial, já que as vinícolas, tecnicamente, trabalham unidas há muitos anos, desde que Tereza, a matriarca italiana dos Giambelli e conhecida como La Signora, casou-se com Eli, o patriarca dos MacMillan. Seus respectivos netos, os jovens Sophia Giambelli e Tyler MacMillan ― sem laços de sangue entre si ― recebem ordens de trabalhar juntos a fim de facilitar a empreitada, o que os leva a uma convivência mais assídua e, por conseqüência, à materialização de uma atração reprimida há muitos anos. No entanto, a fusão encontra obstáculos, começando pelo assassinato do pai de Sophia, Tony Avano. O crime acontece no apartamento da filha, em São Francisco, apenas um dia depois da festa anual de Natal na Villa Giambelli à qual Avano comparecera com a nova mulher, uma ex-modelo arrogante, oportunista e ambiciosa. Logo fica claro que existe um complô da concorrência para arruinar o prestígio e a riqueza dos Giambelli, e Sophia e Tyler precisam lutar contra isso, enquanto, aos poucos, vão se envolvendo amorosamente com cada vez mais intensidade e arrebatamento.

Com certeza, muita gente, ao ler este artigo, se perguntará como alguém pode perder tempo escrevendo sobre essa "subliteratura enlatada". Antes que as pedras venham, só quero repetir o que sempre digo a quem estiver por perto para ouvir: que toda literatura é válida e que as pessoas não devem se obrigar a somente ler os grandes autores o tempo todo. Afinal, por que a leitura precisa ter sempre um propósito elevado? Que mal há em ler um romance mais açucarado e despretensioso de vez em quando? Mais: quantas das pessoas que criticam ou desprezam ostensivamente contadores de histórias como Nora Roberts e Barbara Delinsky já se dispuseram a ler algum de seus livros? E, por fim: quantos desses críticos leram e compreenderam realmente os muitos escritores canônicos, cujos nomes adoram citar com alguma empáfia, para se arvorarem em guardiões da excelência literária? Pois um romance, assim como um filme, uma música ou um programa televisivo, pode apresentar uma infinidade de deméritos estéticos e clichês e não oferecer nenhuma contribuição genuinamente original à alta cultura, e, mesmo assim, ser muito divertido e interessante. Sem esquecer, é claro, o que eu disse mais acima: de que qualquer coisa pode despertar em nós a chama da reflexão. Até um romance água-com-açúcar.

Para ir além








Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 15/8/2008

 

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