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Sexta-feira, 22/8/2008
Ligações e contas perigosas
Ana Elisa Ribeiro

De novo. Fiz orçamento de caminhão de mudança, de preferência com empresa idônea. Não tenho nada de valor, mas vai que os caras deixam cair meu bonequinho de biscuit? Não pode mesmo. Morre um naco da minha alma se isso acontece. Mesmo se for sem querer. Digo isso porque às vezes não é. Os caras vão ficando com raiva da quantidade (e do peso) de caixas de livros e começam a sabotar. Da última vez, deixaram cair a geladeira. E nem tinham tirado as panelas cheias lá de dentro. Só ouvi o barulho. Quando cheguei para ver, deparei com o carregador moreno no meio do arroz fofo e frio. Bem-feito. E também arranharam minha estante favorita. E me quebraram um vaso novinho, desses cheios de design para pôr na sala. E vai dizer que isso não vale nada? Vale para mim, que sou besta com coisa pouca. Não tem dinheiro, não tem jóias, não tem equipamento de último tipo. Minha tevê tem 14 polegadas. Nunca vi tanta gente se incomodar com coisa dos outros. Vão entrando na minha casa e questionando o tamanho do televisor. Nós, os donos, não estamos nem aí. Serve para quê? Para Dudu assistir aos desenhos do Pica-Pau. E olhe lá.

Na última mudança, os malacos encheram um caminhão-baú com a minha casa e foram almoçar. Meu sofá e meu microondas passeando por Belo Horizonte dentro do caminhão. Eu e meu marido nos sentamos no meio-fio e ficamos ali, ruminando a idéia de que os manos sumiriam com tudo. E se os caras não voltarem? Mas voltaram. Não sei por quê, eu sabia que voltariam. Voltaram bêbados. Nem todos, claro. Não quero cometer injustiça. Mas certamente o motorista era o mais embriagado deles. Cheiro de cachaça ruim recendia por todo o apartamento. E eles reclamavam mais. Mudança no domingo, muita caixa de livro. Ele perguntava, sério: "Para quê isso, dona?". Cheguei a refletir sobre a pergunta: Para quê tanto livro?

Desta vez foi mais fino. Os caras chegaram uniformizados, calados, sem radinho e sem simpatia alguma. Tinham uma logística toda diferente, começa pelo fundo do apê, vai trazendo para fora. Embala primeiro. Foram almoçar com o caminhão-baú vazio. Fiquei ali contando as caixas. Voltaram sóbrios e limpos. Reclamaram igual do peso das caixas de livros. E da quantidade delas, que pareciam se reproduzir por esporulação. Disso não abro mão, moço. E eu com pena dos livros todos apinhados, sem muito cuidado, as páginas sem respirar direito. Doida pra livrá-los daquele aperto logo, nas estantes novas, branquinhas. E os moços fortes subindo e descendo os degraus.

Depois da confusão, horas de mudança, os moços receberam o cheque e pediram gorjeta "pelos bons serviços prestados". Não teve jeito. Cinquentão tá bom? Era uma afirmação. A gente sabe quando a entonação (e a pontuação) parece mas não é.

Ficamos ali, sentados no meio da sala, com 87 caixas fechadas. Cafezinho? Mas onde o moço guardou as trempes do fogão? Oito, nove, dez caixas abertas e nada de café. Vai ali na esquina comprar, pô. Meus pés estão inchados. Não dá pra dirigir atrás de café quente. Sublima isso logo, vai.

Dias e dias abrindo caixa, tentando lembrar de que cômodo eram os objetos. Há coisas que a gente esquece que tem e depois chega à conclusão de que são tranqueira. Da outra vez, doei uns 60 livros pra escola pública. Desta vez, vai dar mais. Tem uma pilha imensa ali no canto, na saída da porta, que é pra eu não esquecer de levar quando for trabalhar. Tanto estudante precisando de fonte. Enchi meu porta-malas de obras que não li ou não lerei. Convenhamos.

E o quê mais se pode jogar fora? Já gastei mais de dez sacolonas daquelas da Rebuen só com lixo. Até impressora sem conserto eu joguei fora. O liquidificador velho ainda funciona. Dá de presente pro pedreiro. Ele quer, tenho certeza. Roupa velha? Poxa, esta calça eu usei quando tinha 16 anos. Acho melhor desistir de usar de novo um dia.

Lá pelas tantas, chegamos às contas de luz, água, telefone, celular. Contas de 2000 para cá. Tanta conta. Conta de quando eu flanava solteira pela cidade. Nem me lembrava mais disso. E então resolvi ler as contas. Que informações posso tirar daqui? Contas detalhadas são um problema. Ainda bem que eu estava sozinha na sala. Dá vontade de trancar o lixo. Fui a tanto lugar escabroso, ligações de duas horas de duração. Cada viagem que eu fiz estava ali, inclusive aquelas que fiz escondido. Quando conheci Fulano, Beltrano, Cicrano e a mulher dele. Quando fui para a cidadela ou para a metrópole. Estava tudo lá. E fui chegando a hoje, quando as contas não têm a menor graça. De casa para o trabalho e vice-versa. Nada de ligações perigosas. Não é à-toa que a polícia faz festa com a quebra de sigilo das ligações. Até eu faria.

Viajei bastante nos últimos anos. Nem vi. Falei muito ao telefone, especialmente o celular. Dei muita mancada. E estavam lá as ligações pro meu marido, as primeiras, interurbanos dengosos, demorados. Até a ligação que era pra avisar da gravidez estava lá. Com dia e horário exato. O susto só não estava lá porque não se detalha a conta tanto assim.

Se eu fosse somar por quantas horas falei com minhas amigas, concluiria que dava para ter ido encontrá-las pessoalmente e teria ficado mais barato. Os preços das contas também oscilam. Como a minha vida oscilou.

Depois vêm as contas do cartão de crédito. Resisti muito a aceitá-lo, mas acabei aderindo. Hoje, são dois, que uso com parcimônia. A gente começa a achar que dever aos outros é normal. Que gastar uma grana que ainda nem ganhamos é tranqüilo. Prefiro não comentar. Estão lá todas as minhas compras desde 2002. Tudinho. Da calcinha listrada à primeira viagem ao Recife. Os sapatos comprados em São Paulo, os panos de mesa de Tiradentes, a pousada em Macacos. Meu sigilo bancário ou telefônico é enganação. Fiquei pensando: só não pega marido no pulo quem não quer. E as esposas que se cuidem. Dinheiro vivo ainda é mais seguro para certas operações.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 22/8/2008

 

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