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Quarta-feira, 20/8/2008
Obama e o oba-oba
Guga Schultze

Não consigo pensar direito sobre o candidato ao governo americano, Barack Obama, mesmo que tudo aponte para que ele seja o futuro presidente. As razões desse meu impedimento mental me parecem que são duas, resumidamente.

A primeira é o descrédito geral da política americana, promovido por Bush, claro, e principalmente pelos detratores de Bush. Convenhamos, a dose foi cavalar. O presidente americano se tornou o maior boneco-de-malhar-o-judas que já existiu, virou sinônimo de escrotismo sem remédio e conjurou à sua volta o completo desinteresse pelos rumos da política americana. Ninguém mais tem saco de falar qualquer coisa sobre Bush ou sobre os rumos, as possibilidades, as nuances (não existem mais nuances) das jogadas políticas nos EUA, mesmo porque não existem mais jogadas, no sentido de ações que primam pela sutileza, é o que dizem. Só existem patadas e patuscadas.

Virou fato inquestionável que o homem representa o que há de mais obscuro em política, que ele é praticamente o irmão mais novo de satanás ou que ele é um troglodita completo, absurdamente eleito por um sistema de apuração de votos facilmente corrompível. Os EUA o elegeram aos trancos e barrancos e perderam, na seqüência, todos os votos de confiança que ainda restavam por aí. Ninguém mais quer saber de Bush, do que ele fez ou do que ainda pode fazer. Bush, na mitologia popular, virou um bicho-papão ridículo e sombrio e seu único destino concebível é o ostracismo político. "Hasta la vista, Chuck" (aquele boneco assassino do cinema) é o que se ouve das pessoas se despedindo de Bush.

Agora vem Obama, e um discreto oba-oba se instala. Eu realmente não consigo pensar livremente a respeito de Obama porque tenho que lidar com o reverso das expectativas do governo Bush, tenho que lidar com discursos excessivamente bem construídos para ser tudo o que o outro governo não foi e fico imaginando que, depois de uma tempestade, qualquer raiozinho de sol pode parecer uma bonança. Ou seja, a perspectiva fica comprometida pela simples comparação com o quadro anterior e, por último, tenho que lidar com um tabu, minha segunda pedra no caminho de qualquer tentativa de especular sobre o futuro governo americano.

Qualquer crítica que se faça a Obama deve, necessariamente, ser muito bem calculada para não ser confundida com alguma espécie de racismo. Porque Obama é negro e a confiante afirmação "não sou racista", que toda pessoa de bem, branca, negra ou verde e amarela, tem como princípio, não funciona muito aqui. O assunto não deve ser tocado porque, uma vez tocado, necessita explicação. Não se pode falar dos problemas que um presidente negro, só por ser negro, vai certamente ter que enfrentar. Qualquer menção a esses problemas revela a consciência desses problemas e, em se tratando de racismo, ninguém é mais consciente desses problemas do que um racista. E ninguém quer ser tachado de racista. Não queremos ver e não vemos problema nenhum, porque não somos mesmo racistas. Mas ignorar os problemas, que certamente surgirão, também não é uma boa postura. Lidar com esses problemas exigirá uma delicadeza e um tino político que me parece acima das capacidades da máquina administrativa de qualquer governo. Ou seja, mãos atadas num beco sem saída.

Tenho dois amigos americanos, um em Massachusetts e outro no Missouri. Brancos. O nortista não pode ser mais indiferente à eleição e o sulista é a favor de Obama. Existe a possibilidade, ventilada aqui e ali, de que as novas gerações de americanos conseguiram expurgar o amargo sentimento racial das gerações anteriores. É uma esperança e é fantástica. Seria quase um milagre e significaria uma grande revolução silenciosa. Digo silenciosa porque, me parece, não foi devidamente detectada. Ou seja, discreta demais pela sua enorme importância.

Por outro lado, não posso deixar passar batido um pensamento, muito incômodo, de que Obama se beneficia ― queira ou não, intencionalmente ou não ― desse estado de coisas, da cristalização meio forçada dessa coisa que atende pelo nome de o politicamente correto. Obama é inteligente demais para não se dar conta disso. Pretende ser o presidente de um país onde aconteceu uma guerra civil de cunho racial ― uma guerra, não um levante nem uma guerrilha ― e pretende, testando ao máximo a tolerância das facções políticas mais radicais dos EUA, ostentar um nome muçulmano na presidência de uma nação que já foi, tranqüilamente, tachada de racista.

A história recente dos EUA tem vários pequenos capítulos tumultuados versando sobre o problema racial, escritos por nomes como Malcolm X, Huey Newton e Elijah Muhammad, por exemplo. Onde muitos muros foram pichados (com muitos nomes muçulmanos, inclusive) e muitas portas foram abertas. O que é quase um eufemismo. Foram arrombadas. Até que ponto isso foi colocado para o próprio Obama, até que ponto ele tem consciência das cartas que ele tem na mão nesse jogo de pôquer (é um jogo de pôquer) e até que ponto ele tem certeza do resultado final do jogo, com blefe ou sem blefe, são perguntas que me passam pela cabeça.

Eu torço, definitivamente, para que dê certo, mas estou travado nessas questões e não consigo ir além. Não torço exatamente por ele, Obama, porque há muito já não torço para nenhum político em si, da forma pessoal que muita gente ainda insiste em praticar. Todos os políticos representam interesses diversos, econômicos e sociais. Que esses interesses representem aspirações do povo, isso é o exercício democrático numa democracia instituída. Idealmente seria assim. Que muitos políticos misturem seus interesses pessoais no coquetel que servem ao povo e que muita gente beba dessa pinga barata, é uma lástima. E que ninguém se engane, quase toda figura pública faz isso, é óbvio e ululante.

Eu torço para que o governo Obama, o que ele representa, dê certo. Mas não sou como o Jó bíblico e minha fé fraqueja o tempo todo. Me sinto como a hiena Hardy Ha-Ha, companheira do leão Lippy, do antigo desenho animado de Hanna e Barbera. Lippy é otimista ao extremo:

"Sorria, Hardy! Vamos organizar uma festa e vamos nos divertir, ho ho ho!"

Hardy: "Eu sei que não vai dar certo, Lippy".

Queira Deus, ou Alá (para ficar mais no contexto), ou melhor ainda, minha deusa preferida, a Estátua da Liberdade, que eu esteja errado.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 20/8/2008

 

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