busca | avançada
75378 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Sexta-feira, 5/9/2008
O umbigo, nossa arena olímpica
Adriana Baggio

No dia em que escrevo, a atleta brasileira Ketleyn Quadros inaugurou dois rankings: seu bronze no judô é a nossa primeira medalha nos jogos de Beijing. É também a primeira mulher do Brasil a subir ao pódio olímpico em um esporte individual. Não tenho na manga as estatísticas que a televisão despeja. Mas se o ineditismo de bons resultados em competições individuais merece tal destaque, deve ser porque estão mais acostumados a nos verem bem em esportes coletivos.

E por que isso acontece? Se o senso comum for suficiente para tentar encontrar uma explicação, diria que tem a ver com o temperamento do brasileiro. Somos espontâneos, simpáticos, gregários. Gostamos de estar uns com os outros. Nos acostumamos a viver e conviver em grandes grupos. Nos sentimos bem em ter uma liderança que nos guie, alguém que diga o que devemos fazer. Além disso, em uma equipe se dividem as glórias, mas também as responsabilidades. E o brasileiro, historicamente, tem certa dificuldade em assumir a relação entre seus atos e as conseqüências.

Provavelmente o aspecto econômico seja até mais importante nessa dificuldade que temos em preparar atletas de ponta nos esportes individuais. No treinamento de equipes, ganha-se em volume. A equipe técnica de um time de vôlei de alto nível deve ser maior que a de um nadador, mas não na proporção da quantidade de atletas que estão sendo acompanhados. E mesmo que os custos de uniforme e viagens sejam maiores para as equipes, o patrocínio acompanha.

A estrutura necessária para se praticar esportes individuais também entra no aspecto do custo. Quase toda escola tem uma quadra de esportes, mesmo que seja um pedaço de terra batida. Mas quantas têm uma piscina, ou aulas de esgrima? Praticamente toda criança tem oportunidade de conhecer, tomar gosto e praticar um esporte coletivo: futebol, vôlei, até basquete. Mas para os individuais, o acesso afunila. Diria que a única exceção é a corrida, porque não precisa de muita estrutura ou equipamento. (Não, esquece. Para se tornar um fundista ou velocista de ponta, é preciso mais do que disposição para sair correndo por aí.)

E como uma coisa leva a outra, também temos pouco público e cobertura para os esportes individuais, enquanto os coletivos mobilizam torcedores, transmissões de TV, espaços publicitários, verbas de patrocínio. Em resumo, dinheiro. Assim fecha-se um círculo e voltamos às Olimpíadas. No fim das contas, apesar de toda importância e simbolismo dos jogos, quase tudo tem a ver com a prata.

Nada contra as modalidades coletivas. Acredito que os esportes, de forma geral, podem contribuir para a resolução de muitos problemas sociais. E como falta verba para os outros, que sejam os coletivos mesmo. Um treino de vôlei ou basquete tira os meninos da rua, dá preparo físico, ensina disciplina, motiva e libera aquelas substâncias que deixam a gente feliz. E no caso do futebol, muitas vezes é o único caminho que pode levar crianças carentes a uma relevante conquista profissional, já que todas as outras alternativas não estão habilitadas para elas.

A importância do esporte para o desenvolvimento pessoal e social não é nenhum segredo. Nós sabemos disso e, do nosso jeitinho, vamos tentando fazer o que é certo. Nada, porém, que se compare ao que fazem os chineses. No caso deles, o esporte é uma ferramenta política, ideológica. Formar grandes atletas, que levem o país ao primeiro lugar em uma Olimpíada, tem objetivos que vão muito além da preocupação com o desenvolvimento das crianças, boas notas na escola, diminuição de índices de delinqüência juvenil. A China trabalha para ser bem aceita globalmente, sem ter que mexer muito em pontos polêmicos como o Tibet, direitos humanos, liberdade individual e problemas como os de Xinjiang, a província de maioria muçulmana no oeste do país.

Enquanto dificultavam o acesso às informações sobre o atentado em Kashgar, na dita província, os chineses eram profícuos nas imagens de criancinhas treinando arduamente, fazendo flexões e abdominais até quase chorar de cansaço. E o Brasil, ou pelo menos as nossas emissoras de TV, tem uma forma irritantemente peculiar de tratar as informações que mostram uma grande diferença em relação aos hábitos ou à realidade do país. O tom é um misto de admiração e condescendência. "Puxa, olhe como essas crianças são esforçadas e disciplinadas. Ah, mas que pecado, né? Fazer esses pobrezinhos se esforçarem tanto, mesmo sem gostar de tal esporte. Ufa, que bom que a gente tá no Brasil e nossas crianças são mais livres e mais alegres".

Que tal entender por que um país deseja tanto formar grandes atletas? Por que os pais obrigam as crianças a participar desse tipo de programa? Por que a China faz questão de divulgar essas imagens para o mundo?

No mesmo dia, ou com poucos dias de diferença, a TV brasileira fez beicinho porque uma dupla de atletas chineses de vôlei de praia se irrita e pára de treinar quando percebe que está sendo filmada. O repórter faz sua interpretação despeitada: um país que está aberto para as Olimpíadas não deveria fechar a cara quando chega a imprensa estrangeira. Esse é o problema dos brasileiros: avaliar as situações sempre a partir dos nossos costumes, sem considerar o ponto de vista do outro.

Imagino que para uma emissora como a Globo é difícil não ter permissão para filmar o que quer que seja. Assim como qualquer outro grande player da mídia, ela está acostumada a ser cortejada para mostrar pessoas, marcas, situações. Afinal, seu negócio é o da exposição paga, o que inclui publicidade, propaganda, jornalismo. Porém, enquanto no Brasil o esporte é basicamente sustentado por patrocinadores e interesses comerciais, em que a exposição é fundamental para os lucros e a sobrevivência dos envolvidos, na China é diferente.

Por trás de imagens chapa-branca de criancinhas treinando e da recusa em expor as atletas de vôlei de praia existe o mesmo princípio: o esporte, no país, está a serviço do estado, e não do mercado. A decisão do que, de quem e de quando mostrar é política. Aqui, durante os treinos, os atletas usam uniformes com as logomarcas de seus patrocinadores. Divulgar um treino na TV é algo que tem mais a ver com acordos de marketing do que com a pauta jornalística. As atletas chinesas não tinham logos no uniforme.

Esse tipo de abordagem caipira não foi inaugurada nas Olimpíadas. Acontece sempre. A TV está filmando alguém dançando em outro país? Provavelmente vão dizer que não é a mesma ginga que o brasileiro tem quando samba. Um grupo está batendo uma bola em qualquer canto do mundo? Ah, não é a mesma ginga que o brasileiro tem com a bola. E daí? Samba e futebol não são as coisas mais importantes do planeta e muito menos pré-requisitos para julgar se uma cultura é ou não interessante.

Um país tão oposto ao nosso, como a China, gera muita estranheza ― e também a oportunidade ímpar para uma excelente cobertura jornalística. Mas não. Enquanto idosos chineses dançam e fazem exercícios em uma praça de Pequim, o melhor que o repórter consegue fazer são piadinhas. Gracinhas que, evidentemente, não procuram entender as diferenças, e sim transformá-las em atrações para fazer rir ou causar espanto ― como os circos com os anões, as mulheres barbadas etc.

Ok, mas o que isso tem a ver com nossa pouca representatividade nos esportes individuais? Pouco, a não ser o fato de que, quando somos piores em alguma coisa, devemos tentar aprender com os melhores. Não estou falando dos atletas ― ou melhor, estou sim, pelo menos um pouco. É vívida a dificuldade de concentração que temos em provas como a ginástica, por exemplo. Nossa emoção aflora, não somos acostumados a nos conter. Já que a competição exige, vale tentar adquirir um pouco da seriedade e da frieza ― criticada por nossos obtusos repórteres, claro, sempre atrás da fanfarronice ― ostentada por atletas de outros países.

Essa resistência ao aprimoramento pelo aprendizado tem a ver com a postura do brasileiro de forma geral e da mídia em particular. É como se as câmeras de TV estivessem acopladas ao umbigo brasileiro, mostrando tudo a partir de um ponto de vista estreito, egocêntrico, que limita a aceitação e a compreensão das diferenças. E assim continuamos nos aferrando ao samba e ao futebol, deixando de lado grandes oportunidades de desenvolvimento cultural, esportivo, social. Nada contra essas duas modalidades. Mas sou brasileira e tenho certeza que meu país não se resume a isso.

Adriana Baggio
Curitiba, 5/9/2008

 

busca | avançada
75378 visitas/dia
1,7 milhão/mês