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Quinta-feira, 28/8/2008
Olimpíadas sentimentais
Elisa Andrade Buzzo

O desajeitado ursinho Micha aparece no Estádio Lênin lotado, começa a dançar e a fazer acrobacias engraçadas. Na verdade há toda uma trupe travestida em pelúcia marrom, que enternece a platéia e amolece os corações linhas-duras da velha União Soviética.

A abertura é a das olimpíadas de 1980. Micha é a mascote que me faz chorar quando seu rostinho se move na sincronia perfeita de placas na arquibancada. Há tempos meu controle remoto não zapeava pelos canais esportivos. Há tempos tinha controle emocional ao assistir televisão. No dia seguinte, pela manhã, dou de cara no SporTV com a mesma transmissão ― e não é que minha reação se repete? Os jogos de Beijing se aproximavam e meus sentimentos não estavam preparados para transbordar em ordem. O que acontece comigo quando vejo imagens do bombardeio na Ossétia do Sul ou de um estádio lotado em clima de Olimpíadas? Sentimentalismo barato?

Geopolítica e olimpíadas é uma combinação pacífica... Pelo menos ela parece ser em outra cerimônia de abertura ― Beijing 2008 ―, esquecendo os boicotes de Moscou 1980, por exemplo. Mas que país não quer passar esta imagem em plenos Jogos Olímpicos, momento maior de confraternização de todo o globo, quando outros corações amolecem e os músculos se retesam? Tudo será perfeito nestes jogos, como as "assistentes de cerimônia" chinesas, lindas, altas, educadas, com figurino impecável, robóticas.

O desfile das delegações olímpicas no "Ninho de Pássaro" pode parecer monótono ― os passos medidos, as grandes delegações sendo apressadas pelos chineses. Apesar das diferenças de tamanho, todos os países ficam de certa forma em pé de igualdade, mostrando sua cota de atletas, seus rostos, a quantidade de dentes e, por que não, a representação de sua história. Bonitos, bem nutridos, parecem ser os escolhidos, os fortes para se mostrar ao mundo em espetáculo, seja em trajes mais esportivos, de terno, gravata e tailleur, ou em trajes tribais, véus.

Nestes grandiosos jogos olímpicos "da era moderna", como fazem questão de justificar os comentaristas esportivos, acontecem coisas surpreendentes. Lá está desfilando a primeira mulher de um país do Golfo Pérsico, munida da bandeira de seu país. Países que não existem no mapa, existem nos jogos ― a Palestina aparece com seus gatos-pingados de mãos dadas para o alto. Irã, Iraque, com suas mínimas delegações. Lá está um mapa-múndi em miniatura, os chefes de Estado acenando satisfeitos da arquibancada, no passageiro esquecimento dos conflitos. Adiante, ainda no rol, a judoca Ketleyn Quadros é a primeira atleta brasileira a ganhar uma medalha num esporte individual, pasmem.

Provas duríssimas e decisivas aguardam os atletas, com barreiras que os levam a um fosso cheio d'água. Ou mesmo aquelas em que um único tombo é capaz de desestruturar o corpo, toda uma vida dedicada aos treinos. Pois foi cruel o que fizeram com o ginasta Diego Hypólito na capa da Folha de S. Paulo. O atleta de tantas conquistas é colocado "no chão", o olhar atônito diante do erro improvável, logo no último exercício. Que tristeza rever as imagens de Diego, cambaio mesmo após se levantar da queda, incrédulo, sem entender que locomotiva passara por cima. Olimpíadas são assim mesmo, de se emocionar. E de chorar muito também, que o diga César Cielo, que conquistou o ouro no 100m nado livre. Como se diz, ele chorou como um menino. No pódio, não adiantou nem tentar cantar o Hino Nacional Brasileiro. A câmera é impiedosa, registra todas as reações. O mundo todo saberá de sua vitória ou de seu desastre.

Em noite de competição de atletismo, a câmera ― invisível para os telespectadores, mas bem na frente dos atletas, que aparecem gigantes no telão do "Ninho de Pássaro" ― intimida ou rende um sinal tímido de positivo, uma vibração contida. Concentração para a largada! As atletas, por sua vez, ficam mais encabuladas ainda em sua graciosidade, ou pela falta dela. Uma russa de batom cor-de-rosa aponta para a câmera e envia um beijo com as mãos, depois fecha o punho direito e demonstra força.

Há outras lágrimas para os brasileiros nestes jogos olímpicos, não são poucos os dramas. Fabiana Murer, com "chances reais" de se tornar uma medalhista, não encontra a vara que precisaria para um salto mais alto. Resultado, desconcentração e fora da disputa por medalhas. O show da noite no Estádio Olímpico ficou por conta da russa Elena Isinbayeva, recordista olímpica do salto com vara. Já com a medalha de ouro garantida, ela salta para quebrar seu próprio recorde mundial. "Os fotógrafos se deliciam cada vez que ela vai falar com o técnico", diz o locutor. Na última das três tentativas, Isinbayeva, a mulher mais linda do mundo, desliza impávida pelo sarrafo. Agora ela é também a mulher que voa mais alto no mundo e diz: "o céu é o meu limite".

Já a outra musa, Fabiana Murer, numa transmissão ao vivo, fala que a "organização" é uma "desorganização" e que não volta mais à China. "Tenta se segurar", mas abre o berreiro quando fica sabendo pelo repórter que seus pais a estão assistindo naquele momento. Esperamos que os atletas superem e os brasileiros esqueçam os jogos das mágoas...

Coisa antiga isso de se emocionar em olimpíadas. Não sei também agora nem por que insisti neste assunto, se a vida é feita de um variado de secura e umidade. Ficam as lágrimas do urso Micha, na simplicidade do encerramento moscovita, pra servir de alento.


Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 28/8/2008

 

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