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Segunda-feira, 1/9/2008
Made in China
Pilar Fazito

O que eu sei da China? Nada. Ou quase nada, o que dá no mesmo. Mas acredito que eu não esteja em desvantagem em relação à maior parte dos ocidentais, exceto aqueles que tiveram a oportunidade de conferir as Olimpíadas de perto na terra de Mao.

A China, até bem pouco tempo, era apenas um grande estereótipo estampado em desenhos animados, filmes de kung fu e propagandas do China in Box. Um território amarelo como o restante da Ásia e que sempre me pareceu existir apenas no tabuleiro do War. Um lugar tão mítico que ninguém tinha a certeza de que existia, mas cuja localização é um senso comum: a China fica do outro lado do mundo, se cavarmos um buraco bem fundo na Afonso Pena, invariavelmente, chegaremos à Beijing.

Lembro que na década de 1980 meu pai fez uma viagem ao país e na volta nos trouxe penhoir de seda, vasos de porcelana, fitas cassete com músicas tradicionais, calendários com imagens de flores e esculturas em jade, além de fotos e mais fotos. O que se via era algo bastante diverso do que as transmissões televisivas das Olimpíadas mostraram, o que só reforça a minha teoria de que a China é uma terra mítica e não existe de fato, embora produza calças jeans, sapatos e produtos eletrônicos.


Obra de Johanne 8

Segundo a lenda, esse "Eldorado oriental" abrigaria um quarto da população mundial, ou seja, mais de 1 bilhão de seres viventes, todos clones de si mesmos, que se resolvessem saltar juntos seriam capazes de alterar o eixo de rotação terrestre.

A história da China é nebulosa para todo estudante ocidental e qualquer coisa que tenha acontecido por lá antes da guerra civil de 1949 é resumida pelos livros didáticos como uma espécie de mercado das pulgas: seda, porcelana, chá, ópio, papel, pólvora e macarrão. Quem tem um pouco mais de curiosidade e se lança às bancas de jornais e revistas acaba encontrando o zodíaco chinês; ou um especial da Super Interessante sobre Gengis Khan ― o grande estrategista que dividiu a China em 12 províncias, dando início à dominação mongol. E se os livros mencionam a guerra civil, a posterior ascensão do comunismo de Mao Tsé-Tung e a instauração da chamada Revolução Cultural, a história chinesa para nós ocidentais acabava aí. Durante muitos anos ninguém soube o que estava acontecendo dentro daquele país, nem mesmo seus habitantes.

Na última década, entretanto, a China começou a dar o ar da graça ao Ocidente. E tudo começou com a aceleração da economia, que vem emplacando uma taxa de crescimento anual superior a 10% ao longo de cinco translações consecutivas. Nessa Olimpíada capitalista, a pátria de Mao está em quarto lugar, atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e Alemanha.

Em tempos de crescimento econômico em âmbito internacional, a abertura política e cultural acaba sendo inevitável. E, nessa modalidade, a China ainda é um país incipiente, embora o fato de ter sediado as Olimpíadas possa contribuir para acelerar o processo. Desde o registro memorável do manifestante solitário diante de tanques de guerra na Praça da Paz Celestial, o que se observa aqui e ali é que o mundo começa a se interessar pelo que os chineses andam fazendo. E aí começa o maior desafio dessa abertura política e cultural: como conciliar hábitos e tradições milenares com as exigências da modernidade?

O que mais atraiu os turistas olímpicos às compras não foi a seda, a jade, o chá ou a porcelana, mas uma parafernália de produtos eletrônicos e roupas de marca pirateados ― objetos que podem ser facilmente encontrados em qualquer lugar, do Paraguaizinho, em Brasília, ao Shopping Oi de Belo Horizonte.


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A influência e o interesse ocidental fazem com que os jovens chineses assimilem estilos de vida bastante diferentes daqueles a que seus pais estavam acostumados. Alguém poderia dizer que isso também ocorre no Ocidente. De fato, o choque de gerações independe da nação. No caso da China, entretanto, esse processo tem se dado num espaço de tempo muito curto e sob um governo tão repressor quanto boa parte da própria sociedade. A situação é nova para os chineses, mas eles não têm muito tempo para assimilar as implicações que isso terá no futuro.

Um exemplo desse choque pode ser visto no primeiro livro da jornalista chinesa Xinran Hue, As boas mulheres da China. Publicado em 2002, traz relatos de algumas ouvintes de seu programa de rádio chamado Palavras na brisa noturna, direcionado ao público feminino. Traduzido para diversos idiomas, As boas mulheres... vendeu mais de 40 mil exemplares só no Brasil e permaneceu por um bom tempo na lista de mais vendidos, em 2006. No livro, Xinran apresenta histórias de quinze chinesas, de ricas a pobres, jovens a velhas, que compartilham a terrível sentença do sofrimento certo para quem tem o azar de nascer mulher na China.

Esses relatos foram obtidos entre 1989 e 1997. Depois disso, a jornalista mudou-se para Londres e, finalmente, pôde publicá-los. De lá para cá, as coisas mudaram muito e possibilitaram o surgimento de uma nova geração de jovens chinesas, tão ousadas e astutas quanto as ocidentais. Mas é como Xinran resume: "A apenas duas horas de carro de uma grande cidade como Xangai, a vida chinesa segue como há 500 anos".

O rap chegou às boates da capital, muitas garotas já não dão a menor bola para a eclesiástica questão da virgindade e a cada dia surgem bandas que tentam conciliar a pipa chinesa à pegada pop de instrumentos elétricos. Ao lado disso, os casos de violência doméstica continuam tão alarmantes quanto antes, assim como os altos índices de suicídio, rapto e infanticídio feminino.

A idéia de que um filho vale mais do que uma menina faz com que a China ainda seja conhecida por escabrosas histórias de agressão, desrespeito e abuso contra as mulheres, às vezes perpetradas por elas mesmas. Nos casos de violência doméstica daquele país não apenas o marido aparece como agressor da esposa, mas também a sogra. Além disso, as mulheres que geram meninos têm um tratamento privilegiado e gozam de um status que elas aceitam com orgulho, sendo incapazes de criticar ou denunciar.

Aparentemente, a China esboça sinais de que vem aí uma revolução sexual, de costumes e valores como a que o Ocidente viu nos anos 1960. Mas além de quase cinco décadas de diferença entre essas duas situações, o país terá que vencer a censura dos meios de comunicação e a resistência de uma tradição milenar que divide sua população. Encontrar o equilíbrio dessa transição vai ser mais difícil do que ganhar o ouro nos exercícios de trave na ginástica olímpica.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 1/9/2008

 

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