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Terça-feira, 30/10/2001
Mônica e Cebolinha na Pinacoteca do Estado
Marina Marcondes Machado

Tendo como pretexto, ou quem sabe até estímulo, a chamada "Semana da criança" e o "Dia da criança" (12 de outubro), a Pinacoteca do Estado de São Paulo, que podemos afirmar ser hoje uma das mais respeitadas salas de exposições da cidade e do estado, abriu espaço para uma exposição do desenhista Maurício de Sousa, dono do império dos quadrinhos brasileiros voltados ao público infantil: a "Turma da Mônica".

Como se não bastasse o espaço dado para o evento pela instituição Pinacoteca, pudemos observar a fácil cessão de outros espaços midiáticos: jornais, revistas, telejornais, programas de televisão -- incluindo até mesmo entrevista gravada por Alberto Dines no "Observatório da Imprensa" (versão para a televisão/TVE do site que se diz alternativo e independente das mídias "oficiais")! Como e porquê um veículo como o "Observatório..." foi conivente com o Império Maurício de Sousa, eu não sei. O que sei é que Maurício de Sousa teve, nesses dias, tratamento de alguém tão importante como... o Pelé? Uma "Preferência Nacional", enfim.

Voltando à exposição na Pinacoteca, esse evento ocorre, certamente, baseado nos princípios e dentro da onda das "Re-leituras", procedimento muito em voga entre os arte-educadores que trabalham com crianças e adolescentes. Moda importada dos Estados Unidos para o Brasil nos anos 80, não houve uma escolinha dita "construtivista" que não colocou os seus pequerruchos para "re-ler" Van Gogh e Picasso, consumindo também, é claro, os devidos "produtos" culturais da re-leitura: exposições voltadas para o público infanto-juvenil, publicações sobre a infância dos artistas, livros de arte já bem mastigados de modo que ninguém dissesse mais que é "difícil" compreender arte e fazer arte.

A releitura como metodologia nas aulas de artes, para quem não sabe ou não tem familiaridade com a coisa, consiste, basicamente, em ter contato, principalmente pelo dizer do professor, com a obra de um artista renomado, por meio das imagens (livros, slides, reproduções ou visita a uma exposição) e fatos de sua vida, para, em seguida, "fazer do seu jeito" -- as pessoas passam a receber o material certo (se vão reler um aquarelista, recebem tintas aquarela; um pintor, telas e tintas; um escultor, argila, e assim por diante) e desenham, pintam ou esculpem à la Fulano ou Sicrano para, depois, afixar suas obras-de-releitura nos murais, para serem apreciadas. Algo que faz o deleite dos adultos: "Oh! Como Joãzinho está culto!"

Isso foi exatamente o que Maurício de Sousa e seus "studios" (pois, quem duvidaria de que ele é o Walt Disney brasileiro? Cada país tem o Walt Disney que merece...) fizeram com a Mônica pintada em tela, no papel de Mona Lisa, e Cebolinha esculpido em bronze (!) tal qual o Pensador de Rodin, dentre outras belezuras. Em entrevista concedida à televisão, Maurício de Souza fez questão de dizer que os grandes painéis foram feitos "por ele mesmo" (!?).

Ao menos se pode fantasiar um fato novo: no final da temporada desta exposição, de tanto o Cebolinha bancar o pensador à la Rodin, quem sabe ele se torna uma personagem mais "intelessante" e "pala" de falar "elado"? E a Mônica? Caso encarne verdadeiramente o enigma da Mona Lisa, poderá ter um "insight" sobre a sexualidade feminina, de modo a parar de utilizar seu coelhinho como objeto fálico.

Se isso realmente acontecesse, isto é, se os personagens de Maurício de Sousa se transformassem com o tempo, porque estiveram em contato com os grandes mestres da pintura e da escultura, ou simplesmente porque saíram da mesmice, penso que as crianças teriam muito a ganhar: aprenderiam que as coisas mudam, e que, mesmo os mais tolinhos podem, através da arte, chegar lá. Mas certamente não é o que vai acontecer. Primeiramente porque o mote psico-lógico da "Turma da Mônica" é de encarnar estereótipos de fácil assimilação por qualquer bebezinho, que são: "o que não toma banho"; "o que fala errado"; "a comilona"; "a briguenta"; "o caipira" e assim por diante. Em segundo lugar, não haverá transformação porque, de fato, o que moveu essa exposição, além do pressuposto de que as crianças não são capazes de fruir arte verdadeira (não bebem leite puro, é preciso fazê-lo achocolatado) é o reaquecimento da economia brasileira -- pois, quem agregou valor (isto é, fez de algo objeto do desejo do consumidor, tornando o objeto a ser consumido mais e mais "atraente") a quê? Os quadros, as obras clássicas e a Pinacoteca ganharam ao serem "relidos" por Maurício de Sousa?, ou Maurício de Sousa e sua turma engordarão suas contas bancárias, ao lado dos seus parceiros que venderão mais fraldas, iogurtes, fitas crepe, maçãs, lancheiras, borrachas, bolachas, refrigerantes, vídeos, videogames, cuecas, calcinhas e gibis porque os personagens emblemáticos de seus produtos estiveram expostos na mais cobiçada sala de exibição brasileira das Artes Plásticas do país?

Marina Marcondes Machado
São Paulo, 30/10/2001

 

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