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Terça-feira, 9/9/2008
Pelo direito (e não o dever) de votar
Diogo Salles

Há alguns dias, participei de um debate na MTV, caoticamente mediado pelo Lobão, a respeito do voto obrigatório. Como o tema é polêmico, o debate começou e terminou na mesma temperatura: acalorado. Eram tantas as coisas a dizer e pontos a defender que todo mundo queria falar ao mesmo tempo. As discussões seguiam nos intervalos do programa com a mesma intensidade. Ao final, nós já nem sabíamos mais quando estávamos no ar ou no intervalo. Debate ao vivo deve ser assim mesmo, acho eu. Mas o que este debate na MTV tem a ver com o Digestivo? Tudo. Foi através desta coluna que escrevi que aconteceu o convite para participar do programa. Outros participantes também foram convidados através da internet e a audiência do programa (na faixa dos 15 aos 25 anos) também estava toda on-line, mandando e-mails. Dito isso, é de nossa responsabilidade que essa discussão continue aqui, na Web, já que ela não costuma aparecer muito em jornais e revistas. Voltando ao debate, todos os participantes puderam opinar e houve o contraponto para todas as questões. Porém, ficaram faltando algumas...

O eleitor, afinal, deve ter o direito de não participar do jogo político? Seguindo uma linha de raciocínio bem simples: quem faz alguma coisa só por obrigação, fará de má vontade, fará de qualquer jeito, com total desinteresse. Com isso, é seguro afirmar que quem não valoriza o próprio voto fica mais propenso a abrir o balcão de negócios e vendê-lo em troca de favores.

Isso nos leva direto aos currais eleitorais, um dos pontos mais discordantes no debate. Uns sustentam que esses currais são conseqüência do voto obrigatório, outros acham que, com o voto livre, eles se perpetuariam. Claro que não há como pressupor tudo isso, pois são teses meramente sustentadas por opiniões ― mas acho que posso deixar aqui a minha. Os currais existirão independente do voto ser obrigatório ou livre, mas os políticos (donos desses currais) serão sempre os maiores beneficiados pelo voto obrigatório, na minha visão. Suas campanhas serão sempre voltadas a este eleitorado fixo e eles sabem que sempre receberão seus votos em troca de políticas populistas e rasteiras ― estabelecendo uma relação bastante perniciosa entre votante e votado. Isso sem falar na crença do "menos pior" e do "rouba mas faz", outros filhos bastardos do voto obrigatório.

Um dos argumentos sustentados pelos que defendem o voto obrigatório é a questão da representatividade. Com o voto livre, um governante poderia ser eleito com votos de apenas 20% da população, enfraquecendo a democracia. Seguindo por essa linha, quanto mais votos eles tiverem mais legítimos eles serão. Ora, um governante eleito com os 20% é legítimo, já que os outros 80% tiveram a chance de escolher entre ele e outros candidatos, ou de simplesmente não votar. Com o voto obrigatório, digamos que sua votação seja de 60% da população. O que podemos concluir é que teria aqueles 20% de qualquer maneira ― porque votariam por convicção. Mas e os outros 40%? Sim, provavelmente escolheriam o "menos pior". O governante seria mais legítimo só porque 40% da população o escolheu como o menos ruinzinho? Não há muita lógica nisso. Números inflados só darão a falsa sensação de "legitimidade". Já o voto livre, pelo contrário, é até mais representativo, pois mostra de maneira exata quantas pessoas se deram ao trabalho de ir às urnas para votar no candidato ― e votaram porque realmente acreditaram nele, não porque ele era o mais bonito, mais simpático... ou menos medíocre. O resultado seria apenas a realidade, mas, como sabemos, ela é sempre dura demais para com os políticos.

Existe uma sistemática deletéria no jeito se fazer política por aqui. Nosso processo eleitoral, do jeito que está, favorece algumas dessas práticas. E essa situação é a mais cômoda possível para os candidatos, ao mesmo passo que é perversa para o eleitor. Até os horários de TV e rádio são obrigatórios, mas também não deveriam ser. Pobre eleitor... Primeiro, é obrigado a assistir candidatos seguindo o protocolo do marketing político, beijando criancinhas e comendo buchada de bode. Depois, é obrigado a engolir os discursos vazios e promessas inalcançáveis vendidas pelos sorrisos botocudos. E, por fim, é obrigado a ir às urnas escolher o "menos pior"...

O que vem depois é sabido. Uma vez eleito, o governante passa três anos apenas pensando nas melhores estratégias para se reeleger. Enquanto distribui cargos e verbas para saciar os apetites da "base aliada", deixa o estado em completa paralisia, culpando governos de ontem pelas mazelas de hoje, sem que nada seja feito para mudar. Após este período de muita cooptação, muitas concessões e muitas desculpas esfarrapadas, ele entrará no quarto ano de mandato para pôr em prática sua estratégia reeleitoreira, com lançamentos de novos pacotões de bondades e investimento maciço em propaganda. Aí chegam novas eleições e todo o processo de campanhas eleitorais e votações obrigatórias se reinicia. E ainda tem gente se perguntando porque o brasileiro anda tão descrente e apático em relação à política...

Durante o debate, foi muito defendida a tese de que o voto livre seria supostamente "elitista", pois a não obrigatoriedade do voto, de alguma forma, excluiria os mais pobres do processo eleitoral. Não deixa de ser um raciocínio, mas, por outro lado, quem sustenta essa tese não estaria sendo "populista"? Então esse é um debate entre elitistas pelo voto livre e populistas pelo voto obrigatório? Pessoalmente, acredito que nenhum desses dois rótulos cabe aqui, pois tratam-se de reducionismos preguiçosos e obtusos, que não chegam nem perto de explicar uma questão tão grande e complexa como o voto em uma democracia.

Mas, suponhamos que sim, que o voto facultativo seja "elitista". Como explicar tantas pessoas de classe média (e alfabetizadas) na seção eleitoral, no dia da eleição, ligando para parentes ou amigos perguntando em quem votar? Toda eleição a mesma história se repete: eleitores das mais variadas classes sociais chegando para a votação sem saber quais são os candidatos, procurando opções no mural que fica do lado de fora. Na melhor das hipóteses, uns chegam com o número anotado num papel e outros se limitam a votar na legenda, já que todos sempre mudam de canal ou desligam a TV na hora do horário político. Eu mesmo conheço muita gente com curso superior que não sabe nem o nome do vice-presidente do Brasil.

O único fato que podemos concluir aqui é que o voto livre excluiria quem simplesmente não quer votar e essa exclusão independe da cor, raça, religião, escolaridade ou condição social. Voto livre é isso. Todos podem participar do processo eleitoral, se assim quiserem. Negros e brancos; índios e mestiços; ricos e pobres; letrados e analfabetos... Todos. Portanto, se qualquer pessoa pode votar (ou não), como poderia o voto livre ser elitista? "Ah, mas só os ricos acabam votando". Será? Duvido que essa classe média "esclarecida", de uma hora para a outra, despertaria de sua sonolência cívica e sairia às ruas à caça do "voto consciente" se nem mesmo se deu ao trabalho de olhar os candidatos.

E assim chegamos a outro ponto caro para os refratários ao voto livre: a educação. Sustentam que é preciso antes criar meios para que a sociedade tenha mais consciência política (por meio da educação de qualidade) para que, aí sim, possamos instituir o voto livre. Faz todo o sentido e ninguém ousaria discordar dessa teoria... Não se ela não fosse tão distante da nossa realidade. A política brasileira é (sempre foi) calcada no imediatismo e a questão da educação é crucial para entender como funciona o processo. Os investimentos em educação são altos e os resultados só são vistos a longo prazo. Logo, não é do interesse dos governantes fazer um investimento que só renderá frutos daqui a vinte ou trinta anos se os mandatos são de quatro anos. É muito mais fácil ― e muito mais "imediato" ― inventar embustes como a progressão continuada. O resultado é conhecido. O analfabetismo se transforma em "analfabetismo funcional" ― mesmo que, a rigor, signifiquem a mesma coisa. São resoluções tacanhas como essa que permitem aos candidatos à reeleição dizerem: "Acabamos com o analfabetismo!". É uma mentira criminosa, mas, perante o eleitorado menos avisado, soa muito bonito. E rende muitos votos, claro. As coisas, no fim, se confundem de tal maneira que já não sabemos mais a diferença entre semi-analfabetos e semi-alfabetizados. Bom para os governantes (aliás, ótimo); ruim para o país (aliás, péssimo).

É óbvio que o resultado das primeiras eleições com voto livre será desanimador. Mas forçará a classe política e a sociedade a repensar o processo eleitoral como um todo. Os políticos terão de rever não apenas suas campanhas, mas também seus conceitos políticos. O comparecimento às urnas será baixo e, num primeiro momento, o Brasil perderá de uma forma geral. Mas quem perderá muito mais (esperem para ver) serão os políticos oportunistas. Se para esses candidatos os votos sempre vinham confortavelmente através da troca de favores, como eles levarão o eleitor às urnas se este não for mais obrigado a votar? Mais: o que ele fará para que esse eleitor vote nele? O eleitor ainda poderá aceitar o "agradinho" e simplesmente não comparecer nas votações. Será que, com isso, os candidatos se sentirão forçados a tratar seu eleitor com um pouco mais de respeito? Mal posso esperar para ver.

Claro que ele, sendo um político, vai tentar usar de expedientes ainda mais rasteiros para conseguir os votos, pois ele vai precisar de novos meios de perpetuar seu curral. Isso tornará ainda mais urgente os ajustes no processo eleitoral. O que, "obrigatoriamente" (que deliciosa ironia!), nos levarão à tão sonhada reforma política, a menina dos olhos de 100% do eleitorado brasileiro... Pena que isso não seja do interesse de políticos e partidos ― afinal, está tudo tão maravilhoso para eles... Enfim, já passou da hora de quebrar esse círculo vicioso e entrar num círculo virtuoso. E o voto livre é a porta de entrada para um novo começo. Estão todos convidados a entrar.

Diogo Salles
São Paulo, 9/9/2008

 

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