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Quinta-feira, 2/10/2008
Da indústria do sabor e do desgosto
Elisa Andrade Buzzo

Você já reparou que as bolachas industrializadas não têm mais gosto? Como se um dia elas tivessem tido, ok. Mas havia um sabor, ainda que o da pior estirpe, que é o aroma artificial ou o aroma imitativo.

A gente se acostuma com alguns sabores e, quando menos espera, a indústria muda a receita e lá se vai o cereal matinal favorito. Às vezes até se encontra em outro canto do mundo o mesmo cereal, intocada a proporção de sua fórmula. Mas sinto que uma ou outra sintonia não é suficiente, há um paladar, ou sabores sorrateiros, menos artificiais, diretamente colhidos de um reino apartado de nós. Não foi como uma dádiva dos deuses aquele almoço no acampamento do MST, em Perus? Ou os legumes, sempre frescos, do simpático bistrô Palais des Saveurs?

Queria saber o gosto do primordial, aquele da mandioca mais pura colhida pelos índios, da primeira feijoada fervida na senzala. E comer do ovo da galinha mais caipira trazida pelos portugueses, tomar da água da primeira nascente brasileira, encontrada na violência e no assombro dos primeiros exploradores.

Que pão seria aquele de centenas de anos atrás? Acaso meu paladar industrializado e infantil reconheceria a cana bruta ou o açúcar recém-refinado pelos holandeses? Se desejo um gosto quase ungüento e perfeito, de tempos longínquos, como poderei me acostumar a estas bruscas mudanças, em uma década apenas?

Na ânsia destes paladares retirados da essência da terra, desejo experimentar da bolacha dos náufragos suicidas em Limite (1931), de Mário Peixoto. A obra-prima desconhecida do cinema nacional segue arrastada e melancólica nos acordes das Gymnopédies. Até que a lassidão dos quatro personagens é quebrada pela presença do último alimento disponível: a lata de bolachas aberta, oferecida e indiferentemente degustada na calmaria das águas. Já não me importa tanto o enredo do filme, ou os belos Poemas de permeio com o mar de Mário, mas que eu encontre estas mesmas bolachas à venda, ao final da sessão, na lanchonete da Cinemateca.

Outro dia fui achar que a redenção das bolachas estaria em algumas opções de receitas tradicionais no mercado. Recorri à de coco, influenciada pela memória infantil da paisagem da cabana com coqueiros. Primeiro indício da desilusão: a antiga embalagem de plástico firme se transformara em fina película "abre fácil". A primeira mordida causou tamanho estranhamento na língua, que a segunda serviu para confirmar que algo estranho acontecera com os ingredientes ― pura gordura vegetal hidrogenada!

Antes desse episódio já constatara que o mercado brasileiro de bolachas estava saturado para mim. Também não é fácil encontrar em outros lugares produtos industrializados "com gosto", ainda que as embalagens possam avisar que não há conservantes ou que os aromas são naturais.

Os produtos clássicos, que sobreviveram a uma reprogramação visual, se tornam aguados (caso dos sorvetes), ou disfarçadamente menores. A falta de criatividade impera nesta indústria, que não se cansa de fabricar todo tipo de biscoitos felizes e recheados, transformar os tipos de sorvetes em biscoitos e os tipos de biscoitos em sorvetes, colorizar ao extremo; ou então seguir na linha do light e saudável, banhando as embalagens em prata, propagandeando qualidade de vida em novos molhos em lata (estes, sim, mais naturais), tirando o açúcar e mantendo a cafeína. Depois, ainda bem que vai dar pra escovar os dentes com a pasta do mesmo fabricante, limpar os restos amarelecidos do que antes era uma massa chamada bolacha.

Assim, ainda dá pra engolir o sorvete de chocolate branco, mas é visível a tal maquiagem do formato, agora reduzido. A bolacha luxuosa com gorda cobertura de cho-co-la-te, numa embalagem tão bonita que era como um embrulho para presente, recebe em sua fina casca um gostinho achocolatado. Os palitinhos cobertos de chocolate voltam com tudo, e até que estão gostosos, mas dá pra ver que não se compara o produto atual à requintada embalagem com papel-manteiga... se fosse pra ser ecológica, tudo bem.

Se a indústria alimentícia nos viciou para depois nos abandonar, é chegada a hora de recorrermos aos deliciosos biscoitos caseiros da titia ou aos fabricantes em menor escala, antes que estes sejam picados por um desejo megalomaníaco de crescimento e lucro.

Não boto fé nas bolachas importadas em lata que encontro nos supermercados, muito menos nos produtos franceses de segunda linha que grandes redes desovam em terras brasileiras. E o que fazer, então, com o sentimento de vazio, das coisas queridas e gostosas que mudam da água para o vinho?

Os biscoitos Fofy de chocolate sumiram das prateleiras como o marido que sai pra comprar cigarros e não volta mais. Era um gosto que não enjoava, sempre que se tinha vontade de comer um doce, a salvação estava nos saquinhos vermelhos. Anos depois achei um genérico, como o dos remédios. Em vez dos ursinhos esportistas, uns bichinhos em geral, agora sabor brigadeiro. Talvez, um dia, o original volte. Ainda assim pode ser por tempo limitado.

Elisa Andrade Buzzo
Bordeaux, 2/10/2008

 

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