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Terça-feira, 21/10/2008
Sua Excelência, o Ballet de Londrina
Jardel Dias Cavalcanti

Dedicado aos que, em estado de loucura, amaram. E aos que em estado de amor, enlouqueceram.

"Eu estava em ti, ó movimento, e fora de todas as coisas".
(A alma e a dança ― Paul Valéry)

O país do futebol, do samba e do carnaval consegue, por vezes, produzir milagres no que diz respeito à dança contemporânea. Um desses milagres é o Ballet de Londrina. Fruto da vontade hercúlea encarnada na pessoa do seu diretor e coreógrafo Leonardo Ramos e do impressionante e vigoroso grupo de bailarinos que compõem o Ballet de Londrina, esse milagre se perpetua a cada novo espetáculo.

O Ballet de Londrina comemora seus 15 anos mostrando uma experiência mais que adulta, radical. Com o espetáculo Decalque, sob a música vibrante do compositor russo Sergei Prokofiev, o grupo expõe o resultado de anos de pesquisas e sério envolvimento com a idéia de que a renovação da própria linguagem é o princípio que alimenta e justifica a existência de uma obra de arte.

O espetáculo viajou Brasil afora e exterior, emocionando as platéias que puderam encontrar na dança a força dos movimentos irracionais da alma.

O leitmotiv do espetáculo Decalque é o drama de Romeu e Julieta. Mas não espera-se encontrar aqui uma transposição literal do tema do casal trágico de Verona. Pois a idéia de um "decalque", no sentido de apropriar-se de um tema e decalcá-lo em outro espaço/forma/gênero, é o que move a criação do espetáculo do grupo de dança de Londrina. E a forma com que essa idéia se implementa é o que verdadeiramente conta neste trabalho e o que revela o caráter impressionante e radical da experiência singular do Ballet de Londrina.



Há um componente técnico de onde parte a experiência renovada deste espetáculo: a proposta de se trabalhar de uma maneira diferente com os eixos de equilíbrio e apoio para a locomoção do corpo. "Privilegiando a horizontalidade do corpo para explorar pontos de apoio e eixos de equilíbrio, os bailarinos dançam na maior parte do tempo ao nível do solo, trabalhando bastante os braços e o abdômen, numa proposta diferente da dança clássica centrada no trabalho de pés e pernas. De certa forma, Decalque é um desafio coreográfico que provoca algum estranhamento pela inversão da 'lógica' corporal da dança. O processo foi um desafio para o elenco que, tendo corpos solidamente formados na vertical, através de anos de estudo de balé clássico, teve que construir novos apoios e eixos, fazendo de suas limitações fonte de descoberta de movimentos singulares e até dotados de algum ineditismo".

Este é o dado técnico sob o qual o espetáculo foi criado com grande competência. Mas se fosse apenas isso, o que já é uma experiência e tanto, já seria muito. Pois como sabemos, a arte é mais do que apenas um domínio técnico sobre a matéria que se trabalha. Se apenas a técnica bastasse teríamos vários Picassos, Mozarts e Nureievs andando por aí.

À parte o perfeito domínio técnico/corporal dos bailarinos, o Ballet de Londrina renova o conjunto dos movimentos geralmente já em estado de calcificação em várias companhias de dança. Essa renovação traz junto a ela um comportamento expressivo também novo, fruto de uma busca por algo que transponha o domínio limitado do elemento apenas intelectual/conceitual que tem prejudicado várias companhias de dança do país.

O que importa aqui é a experiência, o risco e a ousadia. E a disposição para colocar o corpo em estado de solicitação para o novo. Deixar o corpo entregar-se a esse desconhecido, a situações onde não prevaleçam normas pré-estabelecidas é o que dota o espetáculo de surpresas as mais intensas possíveis.



E essas surpresas são todas organizadas num conjunto de situações equilibradas, que tornam a coreografia um desafio visual para o espectador que é pego de surpresa a cada momento da apresentação. Corpos insinuam uma decolagem e imediatamente transportam-se para o chão onde realizam uma série de movimentos dotados de força, equilíbrio e paixão. Sintomas da pulsão que os remete simultaneamente aos estados elevados da alma e que trazem em si, ao mesmo tempo, os estados mais baixos dos arroubos irracionais típicos da paixão amorosa. Como no estado de paixão, a força e a emoção tentam equilibrar o que não pode ser equilibrado. E isso o corpo dos bailarinos demonstra com muita sensibilidade nos movimentos que parecem se contradizer o tempo todo.

Há um vai-e-vem entre os movimentos dóceis, em gestos lineares, e os movimentos pesados, carregados de drama e de entrecortes. A doçura e o desregramento do espírito produzem as belas movimentações que unem e separam os corpos dos amantes. E sentimos o grau de ansiedade deste ir e vir, quase nos desequilibrando com a impossibilidade exposta de se controlar a situação daqueles corpos em constante mudança de estado emocional. E os músculos dramatizam o que o espírito sente. Há momentos de felicidade, mas há também momentos duros de choque, de violência e de insatisfação. A música leva tudo isso ao seu mais alto grau de dramatização. Ela guia a força, o peso e a velocidade dos corpos em ação. Sentimos intuitivamente a presença da história de Shakespeare, com a possibilidade da paixão terminar no seu mais dramático fim: a morte dos amantes. Nos lembramos de uma força que ultimamente encontra-se sobre o controle da razão: a paixão irracional. Sobre controle e diagnosticada como loucura.

Mas não no corpo dos dançarinos, onde a paixão existe, se manifesta e move cada gesto, cada situação, cada encontro e desencontro. Renova-se asism a leitura de Romeu e Julieta, não mais na retórica da obra literária, mas na ação dos corpos movidos pela irracionalidade do desejo de amar e pelo gosto da morte por amar.

O impacto causado pelo grupo de dançarinos se deve, então, a esse conjunto de elementos: competência técnica, vontade experimental e ousada coreografia que não teme a força do encontro entre emoção e forma plástica. Tudo isso levado a termo pela presença também expressiva da música de Prokofiev que articula o tempo dos movimentos dos corpos, sua força e dramaticidade dentro da coreografia.

O Ballet de Londrina nos mostra que o corpo de um artista/bailarino pode criar sempre a novidade, o espanto e a beleza, tal qual um teclado de piano em sua infinita possibilidade de variações sonoras.



O Brasil ainda é tímido na apreciação da grande arte e os discursos populistas preferem jogar sobre o público o lixo que anestesia as consciências e a vida. Financia-se o próprio lucro e vende-se a cultura industrial como arte. Entristece ver o pouco financiamento que uma companhia do porte do Ballet de Londrina tem, mas ficamos felizes em ver que isso não os abate, ao contrário, os engrandece na sua luta pela qualidade, pela grande arte que produz no especatdor a chance de se tornar, tal qual os bailarinos, grandes almas.

A Companhia Ballet de Londrina não se mede apenas por este espetáculo que comentamos, mas por sua história e persistência como um todo. Sob a coordenação singular e apaixonada de Leonardo Ramos e com o envolvimento também apaixonado dos seus bailarinos, por anos a fio a companhia tem se dedicado a experimentar com o corpo aquilo que Romeu e Julieta experimentaram com a alma: a paixão.

Para ir além
Ballet de Londrina.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 21/10/2008

 

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