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Quinta-feira, 16/10/2008
Livros, brinquedos, bichos de estimação e imagens
Marcelo Spalding

Recém-passou o Dia das Crianças, aquele dia em que algumas crianças ganham mais um brinquedinho, prévia do que virá no Natal. E eu gostaria muito de saber se as crianças ganharam muitos livros, se pediram mais do que ganharam, se lerão os que ganharam. Não é nostalgia; eu, quando criança, ganhava bonecos do Comandos em Ação e ficava muito brabo se me viessem com meia, cueca ou livro. Aliás, teve um ano que me deram um gato, um gato peludo e pidão. Peludo, pidão e traiçoeiro, nunca chegava perto de mim e quando um dia devo ter insistido, me lanhou com profundidade suficiente para eu nunca mais confiar em gatos.

Lembrei desse bichano e do Dia das Crianças porque acabei de ler Cida, a Gata Maravilha (Record, 2008, 96 págs.), do meu amigo Luiz Paulo Faccioli. E digo já que é meu amigo para não exigirem de mim crítica isenta: li o livro como se lê o livro de um amigo, saboreando, e não anotando com caneta vermelha os pontos a criticar ou louvar. Luiz Paulo Faccioli, o LP, sempre foi um ótimo leitor e, acima de tudo, teve uma ótima professora para a arte da escrita: sua esposa, Cíntia Moscovich. Publicou o primeiro livro, Elepê, em 2000, e o segundo, o romance Estudo das teclas pretas, pela Record, em 2004. No meio disso tornou-se presidente da Associação Gaúcha de Escritores e fundou a Casa Verde. Cida... é a primeira experiência na literatura infantil, e acho que só aceitou porque o assunto do livro são gatos: LP é juiz Allbreed e instrutor pela The International Cat Association (TICA), além de um apaixonado pelos bichanos.

A história conta como a gata Cida apareceu na vida do narrador (aqui vale misturar autor e narrador, porque, quem conhece, parece que está vendo o LP contar a história de sua gata), a chegada na casa, sua primeira gravidez e o ciúme que sentiu ao ter de dividir a casa com Pipoca, um belo e barulhento cachorrinho. Leve sem ser infantil (sic), já nas primeiras páginas encontraremos termos como "prole" ou "ronronava". E não apenas isso: LP aposta num texto razoavelmente extenso e que ocupa graficamente quase todo o livro, cabendo às ilustrações de André Neves pequenas aparições em meio ao texto.

Cito este fato porque os livros infantis contemporâneos, quase na totalidade, investem muito na ilustração e têm textos bastante curtos, cuidadosamente distribuídos nas páginas de forma a não prejudicar as cores e imagens do projeto gráfico. Não que isso seja um problema, mas dão a impressão de que é a única forma de se contar uma história para crianças. E é por isso que surpreende positivamente um livro como o de LP apostar em ilustrações em preto e priorizar o texto. Ainda mais lançado por uma editora como a Record, que não fez essa opção para investir menos, e sim por questões de estética.

O resultado é um texto que será lido e apreciado por amantes de bichos de todas as idades, ainda que uma ou outra criança possa fazer cara feia se ganhá-lo de presente. Não é um brinquedo, é um livro, um livro que conta uma história sem versos, sem rimas, sem concessões.

"Desde que Cida chegou, arranjou também um jeito de participar do meu café-da-manhã. Ela sobe na mesa quando me escuta lidando na cozinha e fica lá à minha espera. Tenho de lhe pedir licença para ocupar o meu lugar cativo, aquele que eu já ocupava muito antes de Cida chegar. Ela se afasta um pouco, miando um miado de contrariedade ― Cida vive contrariada. Aí fica me olhando, imóvel, sentada nas patas traseiras. Parece uma estátua que às vezes pisca os olhos muito lentamente, sempre morta de sono ou preguiça. Quando vê o iogurte, põe a pontinha da língua pra fora, como se estivesse com água na boca. Ela adora iogurte. Mas tem de ser um desses com sabor de fruta. E não é de todas as frutas que ela gosta não. Abacaxi, por exemplo, nem pensar. Em compensação, é louca por mamão."

Agora eu poderia comentar a semelhança entre os bichos de estimação e as crianças de hoje, tão mimados e tão necessários (acho que por isso se entendem tão bem), e pensar se Cida não poderia ser lido como uma crítica a essa postura indulgente dos pais, à medida que a história de LP terminará com a gata contrariada pela presença de Pipoca. Mas não, deixo isso para os que não são amigos do autor e para as professoras que precisam lidar com essas crianças mimadas. Volto à questão da ilustração.

Há aqueles que acham que o texto deve ser suficiente, independente da ilustração, seja ele para crianças ou adultos. Citam o clássico Sítio do Pica-Pau Amarelo, lido com entusiasmo pelas crianças, apesar de sua extensão. Ou o próprio Harry Potter, febre de nem-tão-crianças-assim há alguns anos. Para estes, o desenvolvimento gráfico dos livros é tamanho que muitos textos ruins são publicados e bem recebidos por causa da ilustração, numa inversão de valores inadmissível. Quando confrontados com o fato de vivermos uma era da imagem, lembram que os livros "para adultos" não são ilustrados e continuam circulando. Aliás, os próprios livros para adolescentes têm bem menos ilustrações.

Por outro lado, há muitos escritores e ilustradores que vêem o casamento entre texto e imagem como fundamental para despertar o interesse pela leitura e, mais que isso, trabalhar a imagem e a capacidade cognitiva da criança. Já dos anos 80, estudiosos como a pesquisadora Carmen Regina Alberton defendem esta relação: "desenhos e cores dão alegria aos livros infantis, compartilhando responsabilidades com o texto; a palavra se vê, assim, aclarada, enriquecida, ornamentada pela imagem". Para estes, a ilustração deveria também ser mais presente em livros "para adultos", e tanto que, quando são feitas "edições de luxo", há muitas ilustradas ou de visual mais arrojado.

Particularmente, me parece que um livro como Cida, a Gata Maravilha mostra que sempre haverá espaço para o bom texto, independente do apelo gráfico. O que não desmerece, evidentemente, a evolução das ilustrações na literatura infantil e na literatura como um todo. Aliás, hoje em dia talvez tenhamos mais ilustradores profissionais, que vivem apenas disso, do que escritores profissionais, e por uma razão simples: ilustradores ganham cachê pelo trabalho, além de uma parte dos direitos autorais.

Antes de significar uma inversão de valores, como querem alguns, esta mudança está em sintonia com a perda de importância da palavra e a valorização cada vez maior da imagem, como bem aponta Ítalo Calvino em seu Seis propostas para o próximo milênio:

"Vivemos sob uma chuva ininterrupta de imagens; os media todo-poderosos não fazem outra coisa senão transformar o mundo em imagens multiplicando numa fantasmagoria de jogos de espelhos ― imagens que em grande parte são destituídas da necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como forma e como significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de significados possíveis. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamente como os sonhos que não deixam traços na memória; o que não se dissolve é uma sensação de estranheza e mal-estar."

E, antes de me deixar abatido, tal constatação me alivia, porque explica aquela minha obsessão por Comandos em Ação. Em detrimento dos livros.

Para ir além




Nota do Editor
Leia também "Estudo das Teclas Pretas, de Luiz Faccioli".

Marcelo Spalding
Porto Alegre, 16/10/2008

 

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