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Quarta-feira, 29/10/2008
Entrelinhas
Guga Schultze

A leitura, mais que a escrita, evolui com o tempo. Digo da leitura enquanto exercício individual, bem entendido. O leitor, o leitor assíduo, é um animal envolvido num processo evolutivo, um animal em mutação. É possível que, através dos anos, esse leitor sofra uma metamorfose no sentido inverso daquela proposta por Franz Kafka e, num belo dia, abandone sua condição de barata cega, de ovelha crédula, de vaca de olhos plácidos que contempla o vácuo e que rumina o capim incompreensivel dos textos. É possível, então, que esse leitor, depois de muitas e muitas leituras, acorde em sua cama transformado num espécime raro: um ser humano capaz de assimilar o que lê.

Já é um grande salto evolutivo. Fica menos pretensiosa a frase de Jorge Luis Borges, que dizia orgulhar-se mais dos livros que leu do que daqueles que escreveu. Borges, na verdade, estava se gabando de ser um bom leitor ― um pecado perfeitamente perdoável no velho bibliotecário cego, depois de décadas de leitura incessante ― e mesmo os leitores de Borges foram forçados a reconhecer que a frase, apesar da suposta pretensão, tem um significado que vai além disso. O fato é que Borges podia ler melhor do que a maioria dos escritores pode escrever, se essa comparação é possível.

Há poucos dias eu estava visitando um blog muito bom, cujo autor é igualmente muito bom no fraseado. Dedilha com muita propriedade o teclado e tal. No names, please. E resenhou um livro que, coincidentemente, eu já tinha lido. Isso é meio raro porque esses blogueiros mais jovens ― digamos assim, porque às vezes parecem jovens demais, num sentido não muito elogioso ― e que se interessam por literatura, lêem coisas das quais eu nunca ouvi falar. É uma quantidade enorme de livros de uma quantidade enorme de autores novos, geralmente um pouco mais velhos que os próprios blogueiros, e que estão, daquela forma intensa, juvenil e cheia de energia, redescobrindo a literatura. E, junto com ela, o óbvio literário, o déjà-vu, a já velhusca vanguarda, o realismo, o surrealismo (e, por que não, o sub-realismo), a bendita maldição de poetas gordinhos (tomaram danoninho demais na infância), o jornalismo gonzo, o jornalismo gozador ou simplesmente o jornalismo gozado.

Nem é esse o caso do supracitado blog mas, bem, ele resenhou o tal livro e eu, como os personagens de romances do séc. XIX, me quedei perplexo. Porque o texto é (continuando no séc. XIX) supimpa. Nada do que ele escreveu sobre o livro está fora de questão, a análise está linearmente correta, o texto é inteligente e tudo mais. Mas tudo está errado. De uma forma estranha porque sutil, está tudo errado.

A pergunta seguinte é dirigida a mim mesmo, claro: como é que você, seu sabichão de meia tigela, pretende saber se a leitura de alguém está errada ou não? A resposta é meio complicada mas, de novo, fica entre nós (eu e eu): não pretendo. O fato da resenha ser inteligente não é suficiente para mascarar que é uma visão óbvia. Como eu disse, é uma análise linear. E, por algum motivo (levaria páginas para desenvolver esse motivo), posso afirmar que o livro resenhado é bem mais volumoso do que, sei lá, suas duzentas e tantas páginas. E que a resenha não faz jus à calejada mão daquele escritor, quando este aborda um relacionamento entre membros de uma família e o faz de modo tão sutil.

Aqui se faz necessário o uso de uma palavra da qual eu não gosto nem um pouco: abordagem. A do escritor e a do leitor. No segundo caso, imagino piratas-leitores abordando um navio-livro, ou coisa parecida. O propósito é descobrir o ouro escondido, sem o qual a abordagem não vale a pena. Não é uma postura de todo má, diga-se de passagem. O leitor-pirata examina o navio de cabo a rabo, do tombadilho ao porão e chega a assustar os personagens que estão lá, "cadê o ouro, meu?".

Já fui um leitor-pirata, mas desisti da abordagem agressiva e hoje sou mais um leitor tipo passageiro-clandestino. Não levo armas, só um caderninho de anotações ― claro, é tudo metafórico. Quando embarco num livro novo o caderninho está no bolso e me dou conta de que ele já está cheio de anotações de outras viagens. Ler, afinal, vai se tornando uma espécie de exercício de literatura comparada. A gente vai percebendo aos poucos que a literatura, ou pelo menos uma parte considerável dela, se desloca lentamente para a dimensão que está entre as linhas do texto. Mais precisamente, a literatura está nas entrelinhas.

Por exemplo, entre duas linhas escritas de Paulo Coelho a gente pode ler algumas palavras: dâââ... oops!... argh!... núúúú!... afff!... , e ele vendeu cerca de cem milhões de livros pelo mundo. PC tem vendido perto de cem milhões de livros por aí. Cem milhões de livros, aproximadamente, foram vendidos por Paulo Coelho. Pelo mundo afora. A repetição é uma espécie de exorcismo; não tenho palavras melhores para expressar o inexpressável. Quando Kafka escreveu sua fábula bizarra, estaria ele se referindo a algum tipo de leitor?

Mas, voltando ao assunto das entrelinhas, estas carregam o peso, o lastro literário de uma obra, em termos gerais. E os gêneros literários variam na distribuição desse mesmo lastro. A poesia poderia ser definida como a verbalização explícita das entrelinhas. Poesia em si, acredito, é pura mensagem subliminar. Daí que eu não goste de poesia "cerebral" ou "construída com rigor". Rigor formal em poesia? Pra quê? A não ser que seja para criptografar uma idéia, mas poesia não é feita de idéias e a "mensagem" (sic) poética não é algo criptografável. A poesia concreta, por falar nisso, vive exclusivamente da leitura das entrelinhas. Um poeta concreto coloca, digamos, um punhado de palavras em círculo, em escadinhas ou dispersas pela folha. Palavras aparentemente coesas (por ressônancia fonética, por exemplo) e um outro crítico-poeta escreve um tratado de dez páginas e cinquenta mil toques datilográficos para explicar exatamente o sentido daquela coesão. A poesia concreta não sobreviveria sem um tratado desses.

Escrever bem é mesmo uma arte, mas é bom não confundir essa arte com o que está escrito. O que está escrito, em termos absolutamente literários, não tem importância nenhuma. O leitor-alma-de-jornalista acha que tem. Procura o que o autor está dizendo, quase que exclusivamente. Por isso existem as divisões genéricas dos textos, ditadas pelo senso comum: os ensaios, as teses, as cartas, os contos, as fábulas etc. Só para orientar o leitor. O leitor-jornalista adora informações, a coisa factual, e vai procurá-las até em textos de Clarice Lispector. O leitor-poesia (acho que é a minha categoria) não poderia se interessar menos pela obra de Nietzsche. Mais ou menos assim. Mas os autores e, entre eles, mesmo os que são artistas, não dizem nada de mais, no geral. Vinte livros verdadeiramente originais talvez possam ser achados, se muito, numa vida inteira de leituras.

Opiniões, opiniões, opiniões. As minhas são lançadas contra paredões mudos e voltam sempre num eco indefinível.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 29/10/2008

 

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