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Sexta-feira, 21/11/2008
Algumas leituras marcantes de 2008
Luis Eduardo Matta

Não são poucas as pessoas que me escrevem, de quando em quando, para relatar que têm se valido das minhas sugestões ― expostas não somente nas resenhas, mas, sobretudo, nas listagens das leituras marcantes publicadas nos finais dos anos de 2006 e de 2007 ― para escolher (segundo elas, acertadamente) livros para ler e presentear. E não foi por outra razão que me animei a repetir a iniciativa neste já crepuscular 2008 ― ano pontuado pelas celebrações do centenário da morte de Machado de Assis e do nascimento de Guimarães Rosa, além dos duzentos anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil e dos cinqüenta anos da Bossa Nova ― e a, mais uma vez, compartilhar algumas impressões sobre livros lidos ao longo dos últimos meses, certo de que outras pessoas também poderão se interessar por eles e apreciá-los como eu.

Não custa ressaltar, como fiz nos anos anteriores, que os comentários expostos abaixo são despretensiosos e não têm o objetivo de imergir numa análise crítica rigorosa e pormenorizada das obras selecionadas. Trata-se, acima de tudo, de pontos de vista pessoais de um leitor comum, que lê com a mesma naturalidade com que outros assistem à televisão. Alguns poderão estranhar a heterogeneidade da relação. Outros talvez deplorem a menção a esse ou àquele título. Mas a verdade é que todos eles me proporcionaram momentos extraordinários de abstração da realidade e imersão naquele intenso e multifacetado universo ao qual somente a leitura é capaz de nos conduzir. Os livros não estão listados em ordem de importância e todos eles ocupam o mesmo local no topo do pódio, como jogadores de um time vitorioso de futebol que, ao final do campeonato, recebem juntos o troféu.

* O analista, de John Katzenbach (Novo Século, 2005, 464 págs.) ― Durante muito tempo, considerei O Círculo Matarese, de Robert Ludlum, o melhor entre todos os thrillers que eu li (e eles não foram poucos). Desde o começo do ano, porém, este posto é ocupado por O analista, do norte-americano John Katzenbach, cuja leitura, emocionante, tensa e voraz, me deixou eletrificado, com os dedos grudados nas páginas do livro, a ponto de, desde então, eu estar, em vão, à cata de uma obra do mesmo calibre. Brilhantemente bem realizado em todos os sentidos, O analista conta o drama do metódico e melancólico psicanalista Frederick Starks que, na véspera das suas férias de verão, recebe uma carta macabra, cujo remetente assina como "Rumplestiltskin", uma referência a uma figura sinistra do folclore alemão. Na carta, Rumplestiltskin afirma ter sido arruinado pelo analista no passado e, a título de vingança, lhe dá duas semanas para descobrir sua identidade. Caso isso não aconteça, Starks será forçado a se matar. Vendo seu cotidiano pacato, subitamente, transformado num inferno, Starks embrenha-se numa luta desesperada para descobrir quem é o maníaco que o persegue e em que lugar do passado suas existências teriam se cruzado, enquanto, aos poucos, sua vida vai sendo impiedosamente aniquilada.

* Aprendiz de Homero, de Nélida Piñon (Record, 2008, 368 págs.) ― Quatro anos após a publicação do romance Vozes do deserto, Nélida Piñon retornou às livrarias com uma notável obra de não-ficção; no caso, um conjunto de ensaios nos quais ela discorre, por meio de sua característica prosa poética, a um só tempo erudita, fluente e musical, sobre os cânones literários que a influenciaram como escritora e como ser humano, a começar pelo grande poeta épico grego que empresta o nome ao título do livro e é tema de um dos mais emocionantes textos entre os vinte e quatro que compõem a coletânea. Nele, Nélida ressalta a universalidade de Homero e a assídua presença dele no seu imaginário e cotidiano. Embora se coloque, desde o começo, como uma aprendiz, Nélida revela, mediante o itinerário do seu pensamento e das suas emoções, uma mestra; um referencial sólido e benfazejo para todos nós, numa época enferma onde o esvaziamento moral e intelectual, conjugado com o predomínio da vulgaridade e da ausência (ou inversão) de valores, parece dar as cartas. Os ensaios nos convocam, também a refletir de forma aprofundada, a partir dos livros, personagens e escritores que Nélida evoca, como a Bíblia; Cervantes e seus Dom Quixote, Sancho e Dulcinea; Machado de Assis; Carlos Fuentes; Gabriel García Márquez e os Buendía; Mario Vargas-Llosa; e, é claro, o próprio Homero. E, para completar, o livro ainda traz alguns dos discursos da escritora, como os proferidos em 2006, por ocasião da sua posse na Academia Brasileira de Filosofia, no Rio de Janeiro, e em 2005, durante a cerimônia de entrega do Prêmio Príncipe de Astúrias de Letras, em Oviedo, na Espanha. Este, intitulado "As memórias do mundo", é aberto de forma comovente, quando Nélida afirma: "Procedo do Brasil e reverencio a majestade da língua portuguesa. Neste idioma saúdo Deus e os homens". Aprendiz de Homero é, acima de tudo, uma celebração da literatura, da imaginação, da emoção e da riqueza da vida interior que acaba repercutindo num cotidiano fértil, prodigioso e aberto para todos os matizes da realidade, sem, contudo, abrir mão da necessidade do sonho.

* A catedral do mar, de Ildefonso Falcones (Rocco, 2007, 589 págs.) ― Aos meus interlocutores mais próximos, costumo sempre dizer que uma das mais interessantes e fecundas literaturas produzidas hoje no Ocidente provem do mundo hispânico, em especial da própria Espanha, onde escritores de variados estilos, de Arturo Pérez-Reverte a Almudena Grandes, de Rosa Montero a Cristina Fernández Cubas, de Juan Marsé a Alberto Vázquez-Figueroa, entre muitos outros, têm merecidamente se notabilizado, auxiliados pelo profissionalismo de um dos mais dinâmicos mercados editoriais do planeta. E é precisamente a este caldo que pertence Ildefonso Falcones, advogado que, às vésperas dos cinqüenta anos de idade, fez a sua estréia literária com um impressionante romance histórico, ambientado na Catalunha do Século XIV. O livro narra a saga de Arnau Estanyol, filho de um próspero agricultor que, humilhado e arruinado pelo senhor feudal da região a quem devia obediência, foge para Barcelona, em busca de liberdade e dignidade. Lá, Arnau cresce e enfrenta toda sorte de sensações e desafios, ao mesmo tempo que é erguido, com o dinheiro e o esforço do povo, o maior templo mariano jamais conhecido: a catedral de Santa Maria del Mar. Falcones reconstitui com perfeição a sociedade e a política catalãs de um período turbulento da Idade Média, a ponto de fazer com que nos sintamos transportados quase fisicamente para aquela época, e, em meio a lances dramáticos, batalhas, conspirações políticas, desatinos amorosos e conflitos familiares, joga luzes sobre aspectos fundamentais do pensamento do medievo ― como a relação entre os judeus e os católicos da Catalunha ― ajudando-nos a compreender, a partir desse passado, muitas das questões inquietantes do presente.

* As brasas, de Sándor Márai (Companhia das Letras, 1999, 172 págs.) ― Esse romance magistral do célebre autor húngaro me foi recomendado, praticamente na mesma época, por duas pessoas em cujas opiniões deposito grande confiança: a escritora Sonia Sant'Anna e a lexicógrafa Elza Tavares. As brasas é a história da amizade fraterna entre Henrik, um general descendente de uma abastada família do Império austro-húngaro e Konrad, um homem com inclinações artísticas, amante da música e avesso aos rigores militares. A amizade é bruscamente interrompida por uma circunstância grave que, ao leitor, se apresenta na forma de um mistério, já que somente será revelado nas páginas finais do livro, embora desde o começo fique claro que envolve Krisztina, a falecida mulher de Henrik. Quarenta e um anos depois, Konrad, durante todo esse tempo desaparecido, retorna ao castelo do ex-amigo, na região dos Cárpatos, na Hungria, a fim de esclarecer as feridas do passado. Os dois homens, agora idosos, cansados e solitários reúnem-se, então, para um jantar de gala durante o qual travam um duelo de palavras, que atravessará toda uma noite imersa no frio e na penumbra melancólica de um dos salões do castelo, e acabam, com isso, fazendo reflexões profundas e sensíveis sobre a amizade, a honra, a lealdade e o próprio sentido da vida.

* Histórias de literatura e cegueira {Borges, João Cabral e Joyce}, de Julián Fuks (Record, 2007, 160 págs.) ― Há algum tempo acompanho com grande interesse a carreira de Julián Fuks, tanto no jornalismo quanto na literatura. Tomei contato, pela primeira vez, com a fluidez e elaboração da sua escrita nos textos e resenhas que ele assinava na Folha de São Paulo, passando, em seguida, para a leitura de seu livro de estréia, a coletânea de contos Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu, que cheguei a comentar aqui há cerca de três anos. No final do ano passado, Julián Fuks voltou à prosa literária, com a publicação de Histórias de literatura e cegueira, onde, por meio de três narrativas situadas em algum ponto entre a ficção e a biografia sobre três vultos da história da literatura acometidos pelo drama da cegueira ― Jorge Luis Borges, João Cabral de Melo Neto e James Joyce ― ele tece um sensível e pungente relato sobre a fragilidade humana frente às angústias advindas da decadência física, da solidão e da perspectiva da morte. No entanto, mais do que a cegueira em si, o que sobressai no livro é a forma como, hipoteticamente, os três escritores a encaravam, valendo-se da intensidade de seus universos interiores, do poder ilimitado da sua imaginação e de um posicionamento verdadeiramente filosófico, ainda que, por vezes, melancólico, diante das circunstâncias. O livro foi um dos dez finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa 2008.

* Os cristãos, de Max Gallo, trilogia composta por O manto do soldado (Bertrand Brasil, 2007, 266 págs.), O batismo do rei (Bertrand Brasil, 2008, 196 págs.) e A cruzada do monge (Bertrand Brasil, 2008, 252 págs.) ― Nesses últimos anos assistimos à ascensão de um ateísmo modernoso, com um verniz científico, cuja ponta de lança foram as teses levantadas por Richard Dawkins, Christopher Hitchens e assemelhados, afirmando que Deus é um delírio ou que não é grande, etc. ― como se tal teoria pudesse ser comprovada cientificamente por essa insignificância denominada raça humana. Ao ler esses livros, eu recordava, a todo momento, de uma parábola ouvida quando criança a respeito de uma formiga que se baseava na estrutura do seu formigueiro para tentar provar a impossibilidade de existência do universo. Por tudo isso, foi curioso quando me chegou às mãos os vistosos volumes da trilogia Os cristãos do historiador, escritor e jornalista francês Max Gallo. A série narra a gênese da França cristã na Idade Média, por meio de três importantes personagens históricos: São Martinho de Tours (Saint-Martin de Tours), Clóvis, rei dos Francos; e São Bernardo de Claraval (Saint-Bernard de Clairvaux). Logo no primeiro volume, somos brindados por um fervoroso embate teológico e filosófico sobre a vida de São Martinho, travado entre um jovem cristão e seu pai, ainda apegado ao politeísmo romano que, a meu ver, constitui o ponto alto da trilogia. No segundo livro, entra em cena Clóvis, o bárbaro convertido ao catolicismo e considerado o fundador da França, que, no século V, unificou o imenso território da Gália e tornou-se o primeiro soberano cristão do país. A cruzada do monge encerra a saga, retratando uma época marcante para o cristianismo, no início do segundo milênio, quando a Igreja encontrava-se recém-dividida em duas após o Grande Cisma do Oriente. A trama gira em torno de São Bernardo de Claraval, uma das figuras mais influentes do século XII. Monge cisterciense ― pertencente à Ordem de Cister, uma congregação monástica católica, seguidora dos preceitos beneditinos ―, e preconizador da Segunda Cruzada, cujo objetivo era o de socorrer os estados cristãos (cruzados) na Terra Santa, São Bernardo foi o responsável pela fundação de mais de cento e cinqüenta abadias na Europa, e pela pregação fervorosa dos valores cristãos pelo velho continente.

O maior mistério desta trilogia, contudo, encontra-se no prólogo do primeiro volume, que narra o batizado, em outubro de 2001 na igreja parisiense de Saint-Sulpice, do filho de um casal amigo do narrador, que não se identifica. Em poucos parágrafos, sempre usando a primeira pessoa, ele fala sobre seu passado de engajamento político e de negação da fé e, também, do suicídio de uma filha. Fiquei em dúvida sobre se o narrador era o próprio Max Gallo imerso em reminiscências e reflexões. Cheguei, inclusive, a fazer algumas pesquisas, mas não encontrei nada conclusivo. Até o momento em que redijo estas linhas, o enigma permanece.

* Nevasca, de Neal Stephenson (Aleph, 2008, 440 págs.) ― Neste livro, "Snow Crash" ("Nevasca", em inglês) é o nome de uma fictícia droga/vírus/religião do universo virtual, epicentro de uma alucinante (e diferente) trama de ficção-científica que os aficionados pelo gênero e, também, pela informática não podem, sob hipótese alguma, deixar de ler. O livro, publicado em 1992 (antes, portanto, da popularização da internet) pelo competente e criativo Neal Stephenson, e considerado um dos cem melhores romances em língua inglesa do século XX pela revista Time, é ambientado numa Califórnia futurista, quando os Estados Unidos já não existem tal qual os conhecemos hoje e foram substituídos por uma miríade de territórios autônomos, controlados por mercenários e grupos privados. O personagem principal, Hiro Protagonist, trabalha para uma dessas corporações ― o grupo mafioso Tio Enzo ―, como entregador de pizzas. Mas ele é, também, um exímio samurai, além de um conceituado hacker, e um dos criadores do Metaverso, um universo virtual habitado por toda sorte de avatares, que bem poderia ter inspirado (se é que não inspirou) os sites de realidade virtual hoje existentes como o Second Life. Logo no começo da trama, Hiro conhece a adolescente Y.T., uma Kourier (ou mensageira skatista) que, após provocar um acidente, o ajuda na entrega de uma pizza, o que leva à saída de Hiro da corporação. E será justamente Y.T. a grande aliada de Hiro na luta contra a desastrosa disseminação do "Snow Crash" que, a partir de dado momento, ameaçará derrubar a fronteira entre o Metaverso e a vida real.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 21/11/2008

 

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