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Segunda-feira, 8/12/2008
O Natal somos nozes
Pilar Fazito

Como diria um velho sábio chinês, "invém o Natal", aquela época do ano que se repete ad infinitum. Lá pro fim de outubro, quando o comércio começa a expor a parafernália natalina nas vitrines, a gente começa a se dar conta de que mais um ano se encerra, outro começa e o ritual continua o mesmo: em nome da felicidade e da fraternidade, as pessoas começam a correr de um lado para o outro, histéricas e carrancudas, em busca de presentes, panetones, champanhe, peru e nozes ― as infalíveis nozes. A cidade vira um letreiro luminoso único, com suas luzinhas epilépticas; shoppings ficam lotados de crianças que querem sentar no colo do Papai Noel; a gente tem que suportar as músicas da Simone; e cronistas se sentem impelidos a escrever sobre o Natal, por mais que lutem contra essa falta de originalidade.

Nesse período, eu tento remontar na memória os natais da minha infância e o primeiro que sempre me vem à mente é aquele de 1980. Meses antes, meu pai havia sido chamado para trabalhar em Brasília e aquele era o primeiro Natal que passávamos distante dos tios, primos e avós ― uma família numerosíssima, tanto do lado materno quanto do paterno.

Lembro-me de ter sido um Natal muito triste, já que, dias antes, John Lennon havia sido assassinado e, em casa, os Beatles tinham mais ibope do que os disquinhos infantis dos Saltimbancos, da Arca de Noé e da Turma do Balão Mágico. Embora eu fosse apaixonada é pelo Paul McCartney e vivesse às turras com a minha irmã, não podia deixar de ser solidária em seu luto pelo Lennon. Aos dez anos, seu sofrimento era tão real e pungente que contaminou a todos.

Eu me perguntava se teria a mesma reação que a minha irmã, caso a tragédia tivesse acontecido com o Paul. Certamente, não. Mesmo porque eu tinha apenas quatro anos e estava mais interessada em ganhar um carrinho de bonecas. Pedi ajuda a quem soubesse escrever e estivesse por perto, pus cartas no correio, não parava de comentar como seria o carrinho que o Papai Noel iria me dar e, para garantir, espalhei bilhetes pela casa, inspirada pela propaganda da Caloi.

Meus pais já haviam avisado que não faríamos festa de Natal. O argumento materno era, como de hábito, a falta de dinheiro. Já o paterno, como sempre, a falta de motivo. Ateu até hoje e comunista convicto naquela época, meu pai não via razão alguma para comemorar o aniversário de Cristo e se exaltava ao discursar sobre a exploração do proletariado que tinha na alienação campesina a sua força motriz. Mas aos quatro anos eu só entendia que ele não gostava do Papai Noel, nem de Jesus, mas era louco por uma Coca-Cola.

A despeito do luto da minha irmã, das preocupações financeiras e ideológicas, respectivamente, da minha mãe e do meu pai, e da conformidade do meu irmão, eu só queria saber do carrinho de bonecas que eu haveria de ganhar do bom velhinho. Ops, minto: eu também queria pendurar bolas coloridas em um pinheiro. Minha determinação era tão estridente que minha mãe acabou providenciando uma microárvore desmontável, de uns 30cm, mais ou menos. Para quem imaginava um cipreste de dois metros entrando pela porta da frente, a decepção só não foi maior do que o estranhamento, já que a tal árvore era feita de fiapos brilhantes e azuis, parecendo mais uma dessas perucas metalizadas usadas no carnaval. Que seja! Bem ou mal, já tínhamos a árvore. Faltavam apenas os presentes e a empolgação alheia.

Lembro-me de embrulhar sabonetes e outros objetos da casa para dar de presente a meus pais e irmãos. E apesar de detestar frutas secas, sabia que aí residia o ponto fraco dos meus pais, para quem dezembro e janeiro ainda são sinônimo de nozes, avelãs, castanhas e figo desidratado, além de despesas e impostos. Então, mesmo não gostando, eu acabava participando do ritual anual de quebra das nozes, quando passávamos a noite abrindo as ditas-cujas a marteladas, espremendo-as na dobradiça da porta ou ainda com um jacaré de bronze, que meu avô havia fundido para esse fim ― a gente levantava a cauda do bicho e ele abria a boca para mastigar a noz.

Depois da comida e da cerimônia sazonal das nozes, julguei que deveríamos abrir os presentes, antes de dar o Natal por encerrado. Fui buscar os presentes que eu ia dar e, quando voltei, havia um embrulho mal disfarçado no chão, perto do móvel sobre o qual a árvore-punk reluzia. Eu vi de cara que se tratava do famigerado carrinho de bonecas. Então, larguei os sabonetes embrulhados em algum canto antes de correr vitoriosa até o presente, gritando extasiada "viva! Papai Noel trouxe meu carrinho de bonecas".

Mal terminei a frase e meu pai se levantou da cadeira, com o dedo em riste e o tufo de pêlos entre as sobrancelhas balançando enquanto bradava "o escambau! Papai Noel, uma ova! Quem te deu esse carrinho fui eu!" Ele batia a mão febrilmente no bolso da calça e continuava "com o suor do meu trabalho! Tá entendendo?". Minha mãe ainda disse para ele ficar quieto, talvez preocupada com as conseqüências de uma revelação dramática sobre a inexistência de Papai Noel na vida de uma criança. Mas ele não estava nem aí e arrastou a indignação por um bom tempo, dizendo que a gente precisava saber dar valor ao dinheiro, ao trabalho e ao suor dos pais etc. etc. etc.

Quando se acalmou, todos esperaram a minha reação. Eu sacudi os ombros e falei que o importante era que eu havia ganhado o meu carrinho de bonecas. Acho que minha família ficou decepcionada com o meu espírito interesseiro e consumista, mas no momento aquilo não me incomodava nem um pouco. Eu estava tão empolgada para brincar com o presente que Papai Noel ou meu pai ― tanto faz ― havia me dado, que tratei de distribuir logo os sabonetes embrulhados e dei o Natal por encerrado.

Minha irmã deu seqüência ao luto pelo John Lennon, meu irmão continuou vendo TV e meus pais ainda quebravam nozes, enquanto eu me perdia em devaneios com o meu carrinho de bonecas.

P.S.: Esta manhã, comentei o tema desta crônica com a minha mãe e ela me disse que eu troquei as bolas e misturei as datas, já que em 1980 minha avó estava muito doente e acabou falecendo no dia 28 de dezembro. Por isso, em 1980, não estávamos em Brasília, mas em Belo Horizonte, vivendo um Natal ainda mais triste do que minha percepção infantil foi capaz de registrar. Já o caso do carrinho ocorreu no ano seguinte. Particularmente, eu não me lembrava disso. Pensei em reescrever a crônica para ajustá-la à realidade, mas depois achei melhor ser fiel à minha realidade imaginária e refletir sobre a confusão das lembranças e as versões dos fatos em uma próxima coluna. Ou seja: to be continued...

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 8/12/2008

 

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