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Segunda-feira, 15/12/2008
Sob Custódia, de Anita Desai
Ricardo de Mattos

"Percebeu que amava a poesia não por sua arte de tornar as coisas imediatas, mas porque as removia para uma posição onde se tornavam suportáveis." (Anita Desai)

A porção do planeta que nos costumamos referir simplesmente como "Oriente" parece um navio que se aproximou lenta e majestosamente, aportou, e do qual subimos ansiosos as rampas a fim de conhecer os tesouros trazidos. O rótulo superficial de exotismo é rejeitado e abrimos estupefatos os contêineres plenos de riquezas a serem apreciadas e conhecimento a ser agregado. Inútil tentar estabelecer de onde vem a maior fartura. China? Japão? Tibet? Israel? Países Islâmicos? Índia? Junto de lamentáveis notícias de guerra e conflitos, chegam as de ordem política e econômica e chegam as de ordem cultural. No caso específico da Índia, se Salman Rushdie consolida seu nicho nas nossas editoras e livrarias, começa a dividir espaço com Pankaj Mishra, Kiran Desai e outros. É a ocasião de resgatar nomes veteranos que já foram traduzidos aqui, mas não receberam a devida atenção, como Anita Desai.

A escritora indiana Anita Mazumdar Desai nasceu em 1937, filha de mãe alemã e pai bengali. Poliglota, é versada em alemão, inglês, bengali, hindi e urdu. Começou a escrever aos sete anos, publicando sua primeira história aos nove. Estreou em 1963 ao publicar a novela The Peacock. Sob Custódia data de 1984. Foi adaptado para o cinema em 1993, ano em que a escritora vinculou-se ao departamento de Humanidades do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Por ele, Desai recebeu uma das suas três indicações ao Booker Prize, prêmio que afinal coube a sua filha Kiran Desai. Este último nome poderá soar mais familiar ao leitor, pois Kiran esteve na FLIP de 2007 e seu primeiro romance, intitulado Rebuliço no pomar de goiabeiras, já foi traduzido no Brasil.

Sob Custódia narra os transtornos provocados e sofridos pelo professor universitário Deven Sharma para entrevistar e escrever um artigo sobre o velho poeta Nur, um dos últimos nomes da agonizante poesia urdu. Para perceber o detalhe e compreender o conflito decorrente, é necessário esclarecer que o urdu era a língua culta dos muçulmanos que um dia habitaram em maior número o atual território indiano, no qual erigiram mesquitas e universidades e estabeleceram cortes de refinada cultura. Na década de quarenta do século passado, a Índia conquistou sua independência, mas parte de sua área foi destacada para criação do Paquistão. Estes fatos ocorreram quase quarenta anos antes da novela, o que revela o ancião como sobrevivente de uma época afastada e isolado de um povo que procurou outros horizontes. Deven é professor de hindi, a língua que prevaleceu mas tida como vulgar pelos nostálgicos defensores do urdu. Caso análogo retrata-nos Tolstoi na Rússia do século XVIII, quando a nobreza falava um francês castiço e desprezava o russo nativo.

Deven é um professor universitário cuja existência foi esgotada pela mediocridade e pobreza. Leciona hindi, mas estuda e escreve em urdu nas horas livres. O estudo da língua culta permite-lhe conviver com algo mais nobre entre a penúria em que transita pelo plano terrestre. Vive em Mirpore, uma cidade apresentada como injustificada, ou seja, não há um porto, um centro comercial, universitário ou industrial que explique sua origem. Seus templos e mesquitas são vazios de referências, apenas ocupam lugar no espaço e são usados. Isso num país que preza seu passado e tradições. Apesar da vontade fraca e da auto-estima quase nula, é aquele sujeitinho que fala alto em casa e agride a mulher, principalmente por ver-se nela como que num espelho. Cada um vive no seu incomunicável mundo de ilusões: "Uma vítima não procura ajuda em outra vítima; procura alguém que a liberte".

Outro personagem ligado a ele é seu "amigo" Murad. Foi ele quem encomendou a entrevista, com o objetivo de publicá-la na revista da qual é editor. Numa catástrofe como a que recentemente atingiu Santa Catarina, Murad estaria entre as pessoas que invadiriam as casas particulares em busca de despojos, jamais para resgatar.

Deven é e tem certeza de sua insignificância. Seu pai era outro anódino, mas legou-lhe o gosto pela poesia de Nur, na qual encontrou conforto durante a vida. Encontrando-se com o poeta, desaponta-se. Esperava um velhinho erudito entre companheiros dos bons tempos, conversando sobre poesia e flores. Depara-se com um homem comum, padecente dos limites da idade e das dores provocadas pelas hemorróidas. Um homem de temperamento fraco, explorado por falsos amigos e pelas esposas. No lugar da conversação literária imaginada, sucedem-se algazarras e conflitos familiares. Deven idealizou o poeta de tal forma que sofre ao encarar a realidade, perdendo-se em negações e indagações. Ele não entende como o autor de sublime obra pode levar vida tão desprezível entre aproveitadores. Na vida medíocre de Deven, Nur e sua produção ocupam o centro. Abalar este núcleo, esta ilusão tão bem elaborada, reflete na compensação da sua existência apagada. Por pior que sejam sua vida e sua rotina, elas são acalentadas por uma imagem. Desconfiar que a imagem esteja errada implica em reconsiderações e no enfrentamento de fatos desconfortáveis. Por outro lado, preservar aquilo que se amou e valorizou a vida inteira é preservar a si mesmo.

Justamente por abalar os fundamentos de sua existência é que a frustração sofrida por Deven é mais grave que outros casos apresentados pela Literatura. Em À sombra das raparigas em flor, o personagem de Proust demora-se adivinhando como será a encenação da Fedra de Racine, tantas vezes lida e estudada. Desencantado com a apresentação, segue seu caminho. Humberto de Campos ― esse Luis Fernando Verissimo do começo do século XX ― descreve em suas Memórias Inacabadas a decepção de encontrar o Barão de Itapari: procurou uma figura saída dos livros de História Medieval e encontrou um homem ordinário aguardando o bonde. Posso até citar um caso pessoal. Em torno dos dezoito anos li uma resenha sobre Hipérion, de Friedrich Hölderlin e gravei na memória uma frase: "Envolvemo-nos com a Filosofia, e perdemos nossa inocência; agora devemos seguir até o fim e salvar nossas almas". Entre idas e vindas, esgotamentos e reedições, aos 32 anos finalmente adquiro um exemplar e desaponto-me com o romantismo derramado, baboso.

De qualquer forma, após algumas desilusões o ser humano tem dois caminhos. Ou fica demasiado cínico, ou aprende a conhecer melhor seu semelhante antes de julgá-lo. Sim, porque forma-se o conceito de alguém com base em fatos e impressões. Criada a imagem, cobra-se de quem foi idealizado o comportamento esperado. Daí temos um degrau a mais no aprofundamento do assunto: já pensamos na desilusão causada por nós a alguma pessoa?

Outro aspecto ressaltado da personalidade de Deven é o da inabilidade, da incompetência em evitar situações ruinosas. Diversas vezes fica encurralado, em todas ele recebe ajuda inesperada, mas sempre estraga tudo. Desperdiça cada auxílio recebido em termos de dinheiro, oportunidade e tempo, quando o mínimo de realismo e planejamento afastaria o aperto. O talento de Anita Desai revela-se no fato de ela não recorrer a nada de extraordinário ao elaborar a trama. A escritora demonstra a idiotice do personagem camada após camada num realismo exasperante, que incomoda justamente porque se sabe existir pessoas assim. Apesar das diferenças culturais, tipos como Deven são encontrados em qualquer canto, nivelados pela mediocridade.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 15/12/2008

 

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