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Segunda-feira, 5/3/2001
O Lobo do Homem
Paulo Polzonoff Jr

António Lobo Antunes é hoje o mais vistoso dos escritores portugueses. Além de possuir uma prosa incomparável, meio anacrônica, porque barroca, é um excelente polemista, tendo estado, ultimamente, nas principais discussões políticas de seu país. Motivo de paixão em Portugal, Lobo Antunes rivaliza principalmente com José Saramago, que, contra toda e qualquer palavra de seu oponente, usa a força do Nobel para justificar-se como o Melhor. Idiossincrasias à parte, Lobo Antunes faz parte hoje do que há de melhor na literatura portuguesa, estagnada por muitos anos, mas que atualmente vive uma efervescência digna de uma língua expansão, o que não é, em absoluto, o caso da pequenina língua portuguesa.

Uma análise cuidadosa dos romances de António Lobo Antunes mostra um escritor no auge de sua forma literária, alheio a modismos e muito mais alheio ainda a discussões extra-literárias dentro de sua prosa de fino-trato, que bebe com frescor inimaginável principalmente das caudalosas frases de Proust.

Este psiquiatra convertido à literatura nasceu para o público com a publicação de Memória de Elefante, um best-seller de estréia que catapultou o então desconhecido Lobo Antunes para os círculos literários portugueses que ele insiste em não freqüentar. Escrito em 1979, Memória de Elefante é um relato pungente e duro da Guerra Colonial, travada entre Portugal e Angola em 1974. Contrário aos lugares-comuns, Lobo Antunes fugiu da tradicional narrativa condenatória, de projeção externa, para criar um drama psicológico no qual a guerra é mera coadjuvante, uma batalha a mais na maior guerra de todas, que atende pelo nome de vida.

O romance não se passa no campo de batalha da Guerra Colonial. De volta a Lisboa, um psiquiatra retorna a sua vida atribulada, ainda sob o impacto das minas espalhadas ao longo do fronte. Logo nas primeiras páginas de Memória de Elefante o que se percebe é um homem angustiado, que mais preferiria a morte em combate do que a ilusão de uma sobrevivência saudável. No leitor, este sentimento de ambivalência diante da tantas vezes explorada maldade da guerra é capaz de provocar reações de imenso pavor. Afinal, como um homem pode preferir o ribombar das minas à vida saudável na capital portuguesa? Ao psiquiatra, no entanto, tudo incomoda em Lisboa: desde o sorvete, gostoso demais, ao silêncio, quieto demais.

Ajuda bastante para se estabelecer um clima de angústia o fato de o psiquiatra ter perdido a esposa e as filhas, em decorrência da guerra. Filha esta que o médico só viu crescer por fotografias; mulher que amou por cartas. Dadas as ambigüidade do personagem, no entanto, somos levados a questionar a solidez do mito da maldade intrínseca da guerra. Não seria o homem, na sua imensidão individual, muito mais feroz e sanguinário do que qualquer conflito armado já deflagrado por esta abstração chamada Humanidade?

Esta é a proposta do livro: contrapor-se à idéia de que a guerra seria a responsável pelas mazelas psicossociais do indivíduo. Lobo Antunes leva ao extremo a máxima sartreana segundo a qual o homem nada mais é do que o que faz de si mesmo. E nenhum homem sabe mutilar a si mesmo mais do que o próprio homem.

Como não poderia deixar de ser, António Lobo Antunes imediatamente ganhou ares de maldito por este livro. Auto-exilado na França, foi tido por seus conterrâneos, em especial os socialistas que estavam no poder desde a Revolução dos Cravos, em 1975, como um reacionário, amante da guerra, fascista e tudo o mais que se pode dizer depois de uma lida rasteira em Memória de Elefante. Instalou-se, desde então, um relacionamento de amor e ódio entre o escritor e a Pátria, que tem resultado em excelentes romances e numa sociedade portuguesa capaz de enxergar a si mesma com olhos que jamais foram críticos.

Ah, sim. Vale aqui um detalhe biográfico que talvez interesse ao leitor: Lobo Antunes participou da Guerra Colonial, em 1974.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 5/3/2001

 

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