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Terça-feira, 23/12/2008
1998 ― 2008: Dez anos de charges
Diogo Salles

A charge acima foi feita há dez anos, mas, nos dias de hoje, voltou a ficar atualíssima. Mesmo que o Digestivo não fale de futebol, esse foi o meu gancho para entrar nesse Especial Melhores de 2008. Quando foi anunciado, fiquei pensando sobre quais leituras, filmes ou discos eu poderia escrever. Certamente seriam muitos, mas lembrei-me de uma coisa que foi mais especial para mim: Dois mil e oito. Ao fazer o tradicional balanço anual, percebi que foi um ano fantástico. A exemplo do Julio, também fiz dez anos como profissional este ano. Porém, meu universo é outro. Sou cartunista e, como tal, gosto de tudo relacionado a desenho. Cartum, caricatura, ilustração, quadrinhos... Mas a minha paixão sempre foi a charge. E só agora consegui me estabelecer como um profissional que se sustenta essencialmente dela. Gosto de estar em contato diário com a notícia e com a sátira política.

Foi lá, no longínquo e lúgubre 1998, que eu tomei a decisão que mudaria a minha vida (e não importava o que eu teria de enfrentar para conseguir): queria ser chargista e trabalhar em jornal. Foi um ano crucial e, ao mesmo tempo, um ano de trevas ― um dos piores de que consigo me recordar. Eu sabia que o caminho era longo e cheguei a pensar que não conseguiria. Até agosto de 2007, eu fazia charges apenas quando encontrava tempo, entre um trabalho e outro. Procurava fazer pelo menos uma por semana, para não perder o ritmo. Às vezes eu ficava meses sem fazer charges, seja por necessidade ou por mera desilusão. Mas de um jeito ou de outro, eu sempre voltava a fazê-las. E fazia por gosto, por paixão (por dinheiro é que não era). Hoje faço, no mínimo, uma charge por dia. Muitas vezes faço duas; de vez em quando, três (teve um dia que cheguei a fazer cinco). Finalmente posso respirar charge todos os dias. É a minha prioridade. Os outros "frilas" podem esperar.

Há dez anos, naquele longo e tenebroso inverno que se anunciava, além do desenho, encontrei abrigo primeiro na leitura, mais tarde no humor e, finalmente, na escrita. As coisas foram se somando até que resultassem nesse subproduto que você vê (e lê) agora. Um Frankenstein desses remendos de vida. O completo vazio do "ensino superior" foi o estopim de tudo. A falta de direção na vida piorou ainda mais as coisas. Os primeiros efeitos colaterais começavam a se manifestar. Mas foi o desemprego que deixou sua marca em mim, com ferro em brasa. E logo se tornaria no meu calcanhar de Aquiles. O DESEMPREGO. Doíam-me os meus tímpanos só de ouvir essa palavra. Ter um emprego era como ultrapassar uma linha divisória, que eu via sempre muito distante de mim. Sem emprego, sem estágio, sem oportunidade. Devia ter algo de errado comigo, meu "deus" (aliás, deve ter sido aí que deixei de acreditar nele também). A solução era o mercado informal. Por anos, fiz parte desse gado que sempre povoou as estatísticas de desemprego do IBGE. E não me iludo. A qualquer momento posso voltar ao pasto e fazer parte do gado novamente. Só espero que demore um pouco mais.

Minha trajetória rumo ao anonimato foi bastante tortuosa. Não foi uma escada corporativa, onde se sobem os degraus (cargos) até chegar aos andares mais altos da escala hierárquica. Meu caminho foi errático, elíptico, acidentado, não seguiu um padrão nem roteiro definido. Além de buscar seu próprio traço e linguagem, o chargista precisa encontrar sua própria forma de fazer humor. Para isso, ele precisa mergulhar dentro de si e encontrar seu lado mais sádico, mas sem perder a graça. Certamente essas características são das mais deletérias para qualquer profissional em qualquer área. Para um chargista, porém, tornam-se qualidades, se ele souber usar essas características a seu favor, ou seja, desde que ele não as deixe ir além dos limites do papel onde ele desenha. O primeiro passo (o desemprego) já tinha sido dado, mas aonde mais eu poderia ir para encarar de frente o meu lado mais sombrio? Sim, o caminho estava na política.

Não, não me candidatei a deputado, nem vereador, nada disso. Embora a idéia de receber salário, empregar parentes e ainda não trabalhar parecesse tentadora, preferi não buscar essa vida. A política me salvou de outra forma. Foi através dela que entendi a minha existência no mundo, que entrei em contato com o lado mais vil do ser humano. Os políticos são o reflexo da sociedade ― e vice-versa, já que nós os escolhemos para nos governar. E foi ela, a política, que me fez olhar no espelho e me odiar, ter vergonha, ter raiva de mim mesmo.

Meu irmão mais novo vivia dizendo que a única coisa que eu sabia fazer direito era provocar as pessoas (ele, leia-se). Podia até ser mania de perseguição dele ― e era (irmãos mais novos são sempre "vítimas"). Mas numa coisa ele tinha razão: sou um provocador. Eu só não sabia escolher meus alvos direito. Levou algum tempo, mas consegui. Depois que comecei a votar, a ler e conhecer mais sobre política, tudo se resolveu. Ele nunca mais reclamou de mim.

Nada nesse mundo desperta tanto meus desejos cartunísticos quanto as ideologias. Sempre olhei de longe e vi muita hipocrisia e mentira em todos aqueles olhos esbugalhados e dedos em riste. Toda vez que vejo um ideólogo distribuindo panfletos, o sarcasmo começa a me latejar por todo o corpo. Sinto um desejo incontrolável de caricaturar ambos: ideologia e ideólogo (não necessariamente nessa ordem). Rasurar cartilhas e desmantelar "verdades" vendidas a granel nas quitandas ideológicas é quase uma obsessão para mim. Ah, tem também as ditaduras, que me dão asco. Sou tão contra as ditaduras que, mesmo se fosse eu o ditador, eu não me apoiaria. Credo. Só de me imaginar usando esses uniformes militares ridículos e baixando um AI-5 já dá vontade de fazer uma charge bem agressiva sobre isso.

É verdade que o trabalho de um chargista iniciante é sempre mais virulento do que o normal. É incontrolável. Fúria e paixão estão ali, em traços raivosos e mensagens cortantes, sem meios-tons. Vê-se a evolução de um chargista quando ele consegue transformar toda essa agressividade em ironia. Com o tempo, a raiva se desfaz em desprezo. É inerente ao jovem artista querer mostrar todas as suas armas de destruição em massa de uma só vez. Comigo também foi assim ― ainda está sendo, pois é um processo longo. Como já são dez anos, acredito que a parte mais furiosa da força já tenha passado. Ou não. Cabe a você julgar.

Porém, como um escriba ainda incipiente, percebo que meus textos sobre política ainda causam repugnância em muita gente. É compreensível. Em ano de eleições isso fica latente, pois as crenças políticas ficam mais escancaradas nas pessoas. Em época de eleições, todo mundo quer acreditar em alguma coisa, as esperanças precisam se renovar. É como agora, nessa época de Natal e Ano Novo, onde todos fazem votos, promessas e projeções para um futuro melhor (mesmo que, no fim, tudo fique na mesma). A política é assim também: movidas a sonhos e esperanças. Os candidatos, lógico, tiram o máximo proveito disso. Meu trabalho é fazer o contraponto a todo o aparato midiático-publicitário e destruir a aura messiânica construída em torno de cada candidato. E essas críticas precisam ter conteúdo. Minha obrigação é questionar os números, os dados, os "feitos" e "fatos" que eles vendem. Com isso, incomodo muita gente ― dos dois lados (ou mais, se existirem).

Num país onde ainda se acredita em salvadores da pátria, é preciso questionar. Pergunte a si mesmo: o que mudou na política de dez ou vinte anos para cá? A única diferença que vejo é que antes trocávamos seis por meia dúzia ― agora, com o inchamento da máquina estatal, trocamos doze por uma dúzia. O engraçado é que, em todas as rodas políticas de que participei, as reações ao meu voto nulo variavam entre a estranheza e a indignação.

Sou "do contra", dizem. Nada mais natural para um cartunista, acredito eu (estranho seria se todo mundo concordasse com tudo o que faço). Nunca gostei de desenhos bonitinhos e fofinhos. Até já tentei fazer uma ou outra charge "a favor". Odiei o resultado. Odiei tanto que fiquei contra mim mesmo. Percebi ali, na hora, o quão pernicioso pode ser o "humor a favor". Não é questão de ser contra tudo e contra todos. É apenas a inclinação para a contestação de valores supostamente estabelecidos e crenças pretensamente inalienáveis. Eis aí o segredo de todo bom chargista: buscar o contraditório sempre. A polêmica deve ser encarada apenas como conseqüência. Não se pode buscá-la gratuitamente. O próprio Julio, sempre que nos encontramos, me saúda com um sonoro "E aí, polêmico?!". Ele deve ter razão, vai saber (o LEM concordou com ele). Melhor não questionar, pois não seria muito inteligente da minha parte criar polêmica logo com o editor do site...

Christopher Hitchens, em seu livro Cartas a um jovem contestador, começa tergiversando por todos os rótulos possíveis para alguém imerso em polêmicas, como "dissidente", "iconoclasta", "rebelde" até outros menos charmosos como "radical", "revoltado" ou "metralhadora giratória". Mas a melhor definição (para mim, ao menos) está no próprio título. Prefiro me ver apenas como um contestador.

Outro dia, Eduardo Carvalho me perguntou como é passar o dia pensando em piadas para as charges. Na verdade ― respondi a ele ―, o chargista não pára tudo, senta e começa a pensar em piadas. Não é um mecanismo em que apertamos o "power" e as piadas começam a pipocar. Elas estão por toda a parte. É a maneira de se enxergar o mundo, sempre olhando pelo ângulo do escárnio, do deboche. Para explicar melhor, eu devia ter usado o exemplo do próprio Hitchens (que ele leu): "É algo que você é, e não algo que você faz". Acreditem: qualquer coisa pode virar charge.

Estes foram os meus primeiros dez anos (sinto como se fosse essa a minha idade biológica) e tenho grandes aspirações para os próximos dez. Não será voluntário (nem pessoal) da minha parte, mas sei que ainda vou incomodar muita gente. Principalmente políticos, ideólogos, "intelequituais" e militantes de plantão. Se você não se encaixar em nenhum desses exemplos e for adepto do pensamento próprio (sem cartilhas), vai se divertir bastante. Muitas vezes irá discordar de mim. Tudo bem. Discordar é bom. É a partir daí que se começa uma democracia. E sua crítica não só será muito bem vinda, como, desde já, a considero absolutamente necessária.

Diogo Salles
São Paulo, 23/12/2008

 

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