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Segunda-feira, 22/12/2008
Retrospectiva de cabeceira
Pilar Fazito


Depois da correria do Natal, o Ano Novo. Ah, o réveillon! Tá aí uma data de que eu gosto. É aquele momento em que todo brasileiro, onde quer que esteja, renova as esperanças de que a translação seguinte será melhor do que a anterior. Por mais cético que seja, o cara passa a acreditar que bruxas e orixás existem e que se as simpatias não fazem bem, também não há mal algum em jogar flores ao mar, saltar ondas, usar roupas coloridas conforme o devido fim, comer uvas, fazer desejos e por aí vai.

Diferentemente de outros países em que a passagem de ano é apenas uma festa, no Brasil é um fenômeno de catarse coletiva. Aquela expectativa da contagem dos segundos finais, a explosão de fogos no céu e o júbilo (meu deuz, consegui usar esse termo!) de milhões de pessoas fazem com que o Ano Novo não seja apenas a virada de um período, mas um momento em que a gente se entrega à esperança mais pueril, ingênua e sincera. E mesmo que ela dure um segundo e não consiga acompanhar os outros 364 dias do ano, a sensação é rejuvenescedora e gratificante.

O mais engraçado é que, apesar de ser tão francês, o termo réveillon não é usado na França como aqui. Lá, o mais comum é dizer nouvel an, ou seja, ano novo. Não sei como a gente resolveu adotar essa chamada para que todos "acordem", como diz a tradução literal do termo, mas que o réveillon mais alegre e contagiante do mundo é o nosso, ah, isso é.

Com a proximidade da data, a mídia insiste em recorrer às retrospectivas. Ainda não entendo se isso tem a ver com um balanço dos fatos ou com uma reorganização interna, a fim de economizar trabalho ou tapar buracos na programação da TV e na pauta de jornais, já que todo mundo está com um pezinho nas férias de janeiro.

Confesso que tenho aversão a retrospectivas e prefiro pensar nos planos para o futuro, a enumeração de desejos, saltar ondas e olhar para frente. Ainda assim, atendendo à proposta do Especial de fim de ano do Digestivo, deixo a seguir uma lista de sugestões de leitura. São dez livros que passaram pela cabeceira da minha cama em 2008 e que, de alguma forma, achei que mereciam uma vaga neste hit parade literário. Então, vamos a eles. Que rufem os tambores porque aí vêm...

Os melhores de 2008
(por ordem)

1. Angela's ashes, de Frank McCourt (Pocket Books, 1997, 460 págs.) ― Sem dúvida, a melhor leitura do ano. Eu já havia visto a adaptação para o cinema, dirigida por Alan Parker e lançada em 1999, e encontrei uma dessas edições pocket por uma bagatela de dez reais, soterrada por uma montanha de best-sellers norte-americanos de capas medonhas e títulos fúteis. Não sou uma leitora exímia no inglês e por isso mesmo fiquei mais satisfeita ainda ao ver que compreendi bem a leitura da história, que conta com expressões irlandesas.



O enredo é triste, miserável e encantador. Trata-se das memórias de infância do autor Frank McCourt, que nasceu nos EUA, filho de imigrantes irlandeses paupérrimos, em plena crise de 1929. A família volta para a Irlanda com a ilusão de que a vida seria melhor, mas os problemas só se agravam. Como se não bastasse o pai alcoólatra ― discriminado por ser originário do norte ― e a mãe que está constantemente grávida, Frank ainda tem que lidar com a educação rígida da escola de Limerick, o bullying dos colegas, o preconceito por ter sotaque yankee, a repressão católica, a pobreza e a fome. Uma tragédia que só consegue ganhar contornos poéticos e beleza por ser contada sob o ponto de vista infantil, capaz de ver humor e bons momentos em meio a todo tipo de caos. Magnífico!

2. Bilhões e bilhões, de Carl Sagan (Companhia das Letras, 2008, 288 págs.) ― Bilhões e bilhões é uma seleção de artigos do memorável cientista e apresentador da série Cosmos, que fez parte da infância de muita gente. Aqui, Sagan brinca com a expressão que o imortalizou, embora ele mesmo saliente que nunca disse "bilhões e bilhões", uma grandeza incomensurável. E é assim que o livro começa: com um capítulo destinado às grandezas, capaz de fazer qualquer leigo ou cronista formada em Letras como eu entender o que matemática, física e química têm a ver com as estrelas, a vida no planeta, as emoções humanas e a existência ou inexistência de Deus e de extraterrestres.

Carl Sagan era uma dessas pessoas evoluídas, à frente do tempo. Ele conseguia conciliar todo o conhecimento científico com as questões existenciais e religiosas, além de saber transmitir suas idéias com uma linguagem extremamente simples e compreensível para qualquer um.

Bilhões e bilhões é uma viagem a dois em que ele leva o leitor a parar para refletir sobre o que estamos fazendo aqui, nesta bola de gude azul e cheia d'água. Sei lá... De repente, pagamento de contas e entrega de relatórios para a empresa passam a ter um significado tão estúpido...

3. Fazer um filme, de Frederico Fellini (Civilização Brasileira, 2000, 256 págs.) ― Outro gênio da emoção humana. Em Fazer um filme, Fellini fala mais sobre suas motivações, as lembranças de infância, a experiência como jornalista e as primeiras impressões com a CineCittà do que, propriamente, técnicas cinematográficas.

Ao fazer isso, ele não apenas oferece ao leitor a possibilidade de identificação como também mostra que o mais importante em qualquer criação artística são as emoções pessoais que construímos ao longo da vida.

Este não é um livro para quem procura um manual técnico de cinema e ao mesmo tempo é. Isso porque tem a capacidade de abrir os olhos de todo tipo de leitor para algo muito mais importante: a verdade pessoal que deve ser encontrada em qualquer área da vida.

4. Clarissa, de Erico Verissimo (Companhia das Letras, 2005, 216 págs.) ― Não me perdôo por não ter lido Clarissa antes. Ainda assim, o livro me chegou nas mãos em um bom momento. Este ano, por motivos profissionais, mergulhei em leituras de livros e de estudos densos sobre a Inquisição, a Ditadura, tortura etc. Em dado momento eu já estava pedindo água. Não agüentava mais tanta crueldade no mundo e procurei por algum livro leve, gostoso, simples e, sobretudo, que me mostrasse que a vida poderia ser bela. Clarissa conseguiu.

Este foi o primeiro livro escrito por Erico Verissimo, mas só foi fazer sucesso mesmo depois que ele estourou com Olhai os lírios do campo. Em Clarissa, o autor conta a história de uma menina de quatorze anos que mora com os tios, donos de uma pensão, enquanto estuda na cidade grande. Às voltas com as saudades dos pais e da vida na fazenda, Clarissa cresce, tentando entender os adultos a partir da observação dos personagens que habitam a pensão.

O mais bonito do livro é o olhar de Amaro sobre Clarissa. A despeito de uma insinuação pedófila reprimida, é o ponto de vista desse personagem que revela todo o esplendor da juventude da menina, mais do que a beleza física em si.

5. A história do pranto, de Alan Pauls (Cosac Naify, 2008, 88 págs.) ― Foi uma grata surpresa. Já escrevi sobre o livro, este ano aqui. Trata-se da visão de um menino sobre o mundo à sua volta em plena ditadura argentina. Continuo recomendando-o para aqueles que não se apavoram com um estilo lingüístico formado por longos períodos e incontáveis explicativas que se intercalam, exigindo a atenção constante do leitor. O exercício vale à pena.

6. Mulheres, de Eduardo Galeano (L&PM, 1997, 178 págs.) ― São textos curtos que versam sobre as mulheres ao longo da história da América Latina. Eduardo Galeano é um gentleman que consegue emocionar qualquer leitor. Leitoras, mais ainda. Não há nenhum outro escritor na atualidade que tenha mais cacife e entendimento sobre a história dos países da América Latina e seja tão hábil ao dispor o tema na forma literária.

7. O dia das moscas, de Nei Leandro de Castro (Jovens Escribas, 2008, 154 págs.) ― Uma leitura engraçada e irreverente. Nei Leandro de Castro é potiguar e autor de As pelejas de Ojuara. Também já falei dele aqui. O dia das moscas foi reeditado pelo selo literário Jovens Escribas e traz uma espécie de metáfora da genealogia nordestina. Do português que "champra" a índia Hosana, no primeiro capítulo, aos 26 filhos ― um para cada letra do alfabeto ― de Anunciada e Honório, o enredo conta a história de uma família numerosa e das disputas pela herança do patriarca, que ainda nem bem morreu: inválido, ele passa o tempo escrevendo garranchos aos quais ninguém dá atenção.

Depois de Jorge Amado, tá aí um bom material para a Globo investir em suas novelas e ajudar a recuperar o ibope.

8. O segundo sexo v.2, de Simone de Beauvoir (Nova Fronteira, 2001, 504 págs.) ― Também já falei deste livro aqui. A leitura não é fácil, é verdade, mas o segundo volume compensa bastante. Embora tenha sido escrito em 1949, continua atual, desfazendo mitos e mostrando que a ditadura da beleza e da perfeição como mãe, esposa e dona de casa continuam sendo nocivas à mulher e que sua emancipação em muitos casos tornou-se, na verdade, uma grande armadilha.

9. Confissões da Bahia, de Ronaldo Vainfas (Companhia das Letras, 1997, 366 págs.) ― Ok, apesar de se tratar de uma daquelas leituras densas sobre a Inquisição, merece ser lido por todos os brasileiros. O historiador Ronaldo Vainfas fez um trabalho excelente ao publicar esse material com uma atualização gramatical e ortográfica que permita a qualquer um entender melhor como era a vida no Brasil dos anos 1650. E, cá para nós, não era tão diferente dos dias de hoje.

O livro traz a transcrição das confissões dos moradores da capitania da Bahia diante do primeiro visitador da Inquisição que chegou ao nosso país. Sim, para quem não sabe, embora o Brasil não tenha presenciado queima de bruxas, hereges e judaizantes, tivemos visitações do Santo Ofício português. Os casos suspeitos de erros de fé eram enviados para os tribunais de Lisboa, onde muitos foram julgados e sentenciados ― alguns à morte na fogueira.

Ler essas confissões hoje é um exercício e tanto de compaixão e de identificação. Primeiro, a gente tem vontade de rir em muitas passagens, já que até os casos de sodomia são descritos em detalhes e a fofoca "rola solta", dando a entender que vida pública e privada não tinham muita distinção ali. Mas então a gente se lembra de que essas confissões eram feitas sob a pressão massacrante da culpa imposta pela Igreja Católica e, além da vergonha de se exporem, os confessores ainda tinham que lidar com a angústia da delação de amigos e parentes.

Em termos culturais, a gente vê que o tempo passa e os sentimentos humanos continuam os mesmos. Em termos históricos, entendemos de onde vieram os métodos de tortura que se repetem toda vez que um regime totalitário domina uma nação.

10. As boas mulheres da China, de Xinran (Companhia das Letras, 2007, 256 págs.) ― Xinran trabalhou como radialista na China antes, bem antes, de o país pensar em vender produtos para o Brasil e sediar uma olimpíada. Naquela época, o dragão do oriente vivia o auge de seu fechamento cultural e a censura era muito pior do que se comparada com a de hoje em dia.

O livro narra a experiência de Xinran com um programa de rádio voltado para as mulheres chinesas. Com a proposta de dar espaço para o relato das ouvintes e tentar estabelecer um diálogo com elas, Xinran acabou colhendo um vasto material para o livro, que, aliás, só pôde ser publicado depois que ela se mudou para a Inglaterra.

Em determinadas passagens, o tom dos relatos se torna exageradamente melodramático. Mesmo assim, a leitura vale a pena para a gente se dar conta de que existem realidades bem diferentes da nossa.

Voilà! Dez livros bons para todos os gostos. Divirtam-se, crianças, e tenham um excelente 2009, repleto de novidades literárias e culturais.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 22/12/2008

 

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