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Sexta-feira, 31/7/2009
Poeirópolis (como no início do século XX)
Ana Elisa Ribeiro

Esta cidade sempre me pareceu avermelhada. Desde criança, estou às voltas com a Antônio Carlos. Desde a adolescência que a avenida vive em obras, e eu também, em torno dela, que parece ter essa característica das coisas que jamais estão completamente prontas. De todo modo, é bom vê-la mais bonita agora.

De um lado
Nos últimos tempos, tenho passado por lá de propósito. Foi-se o tempo em que desviava por outros caminhos, mais estreitos, mas curiosamente menos densos de gente e carros. E não é que esteja mais fácil atravessar da zona nordeste para o centro. É que a paisagem mudou. Algo me acomete ali que não sei bem explicar. Algo relacionado a esta falta de referência. Há mais de trinta anos que passo por ali e vejo uns prédios, uma favela, uns postes antigos, um ponto de ônibus extenso e um viaduto sujo. Do lado esquerdo de quem sai do bairro, o prédio dos Correios, a ex-concessionária Mercedes, com arquitetura peculiar, os inúmeros sacolões pichados, pensões suspeitas, igrejas anômalas, milagrosas, caça-níqueis, até uma boate sombria (apesar do neon alegre na fachada) e a subida íngreme para a faculdade tradicional (que agora entrou no breu da concentração das instituições privadas de terceiro ou quarto escalão e passou para as mãos dos financistas profissionais).

Os prédios foram todos arrancados dali. Todos, menos aqueles de estruturas mais robustas, que serão, em breve, implodidos. Implosão é uma cena linda, não? A poeira soluça. Sumiram-se os prédios da Mercedes e dos Correios, sumiu-se o posto de gasolina da esquina, referência para quem virava na rua Formiga. E agora? No lugar onde os motoristas erram colocaram uma placa laranja para identificar a curva. As referências sumiram-se todas. A cidade, aqui, é outra. Indo para o centro, no lugar dos prédios mal-conservados, veem-se as ruas mais altas (a Diamantina apareceu no mapa visual) e a Serra do Curral. Talvez seja isto o que me emociona: ver a Serra do Curral era coisa para poucos, na zona sul. Agora os horizontes da cidade também são meus. E a outra emoção mais trêmula, a de ver a paisagem mudar bem na nossa frente, de um dia para o outro. Neste caso, literalmente, do dia para a noite. Os tratores com bocarras pegam e comem pedaços dos prédios como se fosse tudo algodão, isopor, papelão. Dá gosto.

Mas isso porque a casa não é minha. Para que a poeira planasse e as edificações fossem engolidas, para ceder lugar ao complexo viário, as pessoas e suas casas foram desapropriadas. Conheço gente que teve meia casa desapropriada. Nem nada, nem inteira, era só metade. Imagina o que é?

De outro lado
Desde criança sei das histórias de atropelamento nas pistas centrais da Cristiano Machado. Ali pelos bairros avizinhados, isso é lenda urbana. Olhe para os dois lados. Mesmo assim, os ônibus vermelhos vinham do nada. E não faziam distinção entre pais de família e vagabundos armados.

Ainda sem shopping, sem restaurante, sem torres coloridas, sem viaduto, a Bernardo Vasconcelos era larga, sempre larga, malcheirosa, córrego a céu aberto que foi sumindo junto com o crescimento da cidade. Bicicletas, cooper. Antes mesmo de a caminhada entrar na moda, as pessoas andavam de uma ponta a outra porque o trajeto é razoável, embora não seja bonito e fosse, naquela época, ainda menos.

Almoçando na pizzaria com nome de zona sul, fiquei observando o movimento intenso, em pleno sábado. Nada disso era assim. Não sinto saudades. Junto com essa lembrança da avenida pacata me vêm outras ruinzinhas. Interessante mesmo é ver que a cidade mudou e o tempo passou, mesmo em bairros que não parecem vinculados a nada de muito importante.

Mesmo ganhando prédios, graças a Deus poucos e baixos; recebendo sinalização, inclusive turística; pinturas de chão, placas, guardinhas de trânsito; mesmo ganhando lojas, restaurantes, sorveterias, retornos; sendo caminho para o aeroporto novo e para a Linha Verde; hotel cinco estrelas; centro de convenções; shopping da casa; empreendimentos promissores; asfalto e bueiro de zona sul, minha sensação não é de conforto. Junto com o aspecto civilizado vieram as radiopatrulhas em tempo integral, parando os moradores de um jeito pouco amistoso; os arames e as cercas eletrificadas de campos de concentração também se achegaram. Quando nos assustamos, estávamos assim, como nos filmes do Holocausto. Como muitos de nós moramos em casas, não temos guaritas e vigias trancados em dois metros quadrados de Blindex marrom. O jeito é saber rezar desde cedo e ter sempre alguém preso em casa para a eventualidade de precisar receber os bandidos.

(Agora me dei conta de que queria escrever um texto bonito e comemorativo. Tenho certeza de que isso há de acontecer.)

Lá perto do aeroporto velho temos um anel rodoviário famoso. Meu pai passou por lá, diariamente, por mais de trinta anos, e continua vivo. As coisas que vão derrubar o velho são outras. Agora quem passa por lá todos os dias sou eu. Vou jogando este game de segunda a sexta para ver no que vai dar.

No meu trabalho, estamos todos fazendo uma simpática campanha para deixarmos os carros na garagem e irmos trabalhar de outro jeito qualquer. Queremos, tentamos. Seria muito bom poder fazer isso sem chegar atrasado, sem pegar quatro ônibus. Meu bairro continua lá, eternamente lá, sem ônibus que o ligue à zona sul, onde não interessa mesmo que possamos chegar.

Metrô? Onde? Ah, aquele trem ali. Bonito, mas não me serve. Antes de chegar à estação, fui assaltada na passarela. Voltei para casa e bebi uma água com açúcar. Amanhã tento de novo. No meu bairro, ainda não nos convenceram de que bacana é morar em apartamento. Vão convencer, eu sei. O lote lá custa caro. Vai morrendo o último velhinho da família e o filho caçula logo troca o terreno por um apê de cobertura com manta asfáltica. Chique mesmo. A polícia veio avisar que é pra dar várias voltas no quarteirão antes de embicar o carro na garagem. A gente tem de ser mais esperto do que o ladrão. Se não der, é só discar 190. Vai chegando em casa, tem ladrão esperando no portão. Romântico como só ele sabe ser. Abre a porta, mermão. Lá dentro está o resto da família, inclusive o bebê, que haverá de herdar nossa síndrome do pânico.

De qualquer lado
(Que baixo astral! Isso é coisa que se escreva sobre a cidade?) A Antônio Carlos está bem mais bonita. A Cristiano Machado ainda anda enrolada, mas a obra é grande demais. É preciso ter paciência. Tudo isso vai compensar, claro que vai. Assim vai ficar mais fácil levar meu filho para a escola privada que vou ter de pagar para ele conseguir preencher o gabarito no vestibular. Lá no meu bairro tem duas escolas estaduais e duas municipais. O Colégio Municipal da Lagoinha, que foi referência absoluta de formação e ensino nos anos 60-70-80, virou observatório do tráfico, está fechado para balanço. O jeito é pagar dobrado. Importante é acreditar. A gente se esforça tanto, cumpre os compromissos, paga tudo em dia, não pode desistir. Filho pequeno dá uma esperança danada nos adultos. Aquele olharzinho doce encara a gente e faz cada pergunta: "Mãe, por que é que as pessoas estão virando bichos?". Vou responder o quê? Mandei logo ele ler Kafka, para ver se a gente tem uma luz.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 31/7/2009

 

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