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Sexta-feira, 9/1/2009
Nôwo e mayúskulo akôrdo ortográphiko
Ana Elisa Ribeiro

Havia anos que eu tratava nosso alfabeto como se ele tivesse mesmo K, Y e W. Com tanta amiga chamada Kátia, Karina ou Keyla; tanto Warley (desde a mais tenra infância) e Wesley, tanta Yasmin e até um Yóris, era impossível desconsiderar as simpáticas letrinhas. Isso para abordar apenas os nomes próprios. Em algumas palavras comuns, as consoantes também apareciam de vez em quando, como era o caso das emergentes abreviações de internet. Por falar nisso, depois dos chats, as ex-expurgadas alfabéticas renasceram e nunca estiveram tão vivas. No meu celular, chove bjk, kkkk e kd. Fazer o kê? O jeito é aceitar. Essa questão dos nomes próprios está toda explicadinha no Acordo. E não sei bem para quê.

Outra seara em que a coisa já rolava solta era nos nomes de meses do ano e dias da semana. Revisora profissional que fui (e há grandes respingos ainda), fazia tempo que eu sabia das minúsculas. Vivia mexendo nos textos dos outros e reduzindo as iniciais quando me aparecia um Agosto. Ora, de vez em quando um insolente questionava: "Mas em inglês é August!". Insolente, sim, uai. E daí se em inglês é assim? Em português não é, baby. Sexta-feira, embora merecesse (e aqui esteja em início de oração, claro), não se escrevia com letra maiúscula. Mais uma vez, vinham os simpatizantes de Friday questionar. E letra maiúscula (ou caixa-alta, para quem entende de tipografia e sabe a razão desse nome) é um problema sério, às vezes questão de importância. Já vi muito Doutor ficar melindrado com a grafia doutor ou com um dr. antes do nomezão. Ah, fala sério! O D maiúsculo deixa o título mais importante, né não? Dona Maria é mais mulher, Senhor José é mais homem, Doutor Fulano é muito mais imponente. Em geral, esse problema se agravava em editora de livros de Direito. Não sei por quê...

Mas é que dizem para nós, quando ainda somos crianças, que letra maiúscula é coisa que se põe em nome próprio, não é isso? E então, quando nos deparamos com algo que parece se enquadrar aí, metemos logo a caixa-alta. A intenção é ser "correto", vejam só. Sexta-feira não é o nome do dia? Inclusive, nem existe outro com o mesmo nome. Janeiro ou agosto não são os nomes dos meses? Por que não incluir aí as maiúsculas iniciais? Pois é. O problema não é bem a regra, é a explicação. Em geral, as explicações que nos dão até o ensino médio são horrorosas, se é que são explicações. Os professores, para simplificar ou para camuflar o que também decoraram, oferecem aquelas "explicações" do tipo "o bebê nasce da sementinha que papai põe na mamãe". E torcem para que o garoto curioso não pergunte como é que papai faz isso.

Pior ainda: se o indivíduo não se tornar um especialista em língua, o que ocorre à maioria absoluta das pessoas (e cada vez mais), nunca mais terá grandes oportunidades de saber a razão das coisas direito. E se foi um bom aluno de ensino médio, isso bastará para que sua crença na sementinha seja eterna. É isso aí. Disse a tia Maria que sexta-feira é com letra minúscula, a despeito de ser esse o nome do dia da semana e também deixando meio de lado aquela generalização sobre os usos de letras maiúsculas em nomes próprios, ok? Isso. Mas já que sou especialista em língua, portuguesa, por sinal, já esclareço: não se sabe qual é a razão disso, está bem assim? É uma convenção. Um acordo. Algo estipulado por um grupo autorizado a essas estipulações, certo? Quem tem juízo e quer passar em concurso público apenas obedece.

E os pontos cardeais? Está certo que norte, sul, leste e oeste (e seus subpontos) não são palavras que a gente usa a torto e a direito. Mas sabe lá quando é que se vai precisar delas, não é mesmo? Melhor saber que isso, sim, mudou. Os nomes dos pontos cardeais (olha aí a inconsistência com relação às convenções para meses e dias) eram com iniciais maiúsculas. Os manuais que eu uso, no entanto, já mandam pôr minúsculas há séculos. Só são maiúsculas essas palavras quando se referem às regiões do país: Norte, Sul, Sudeste etc. De qualquer forma, letra minúscula é sempre mais econômico nos toques do teclado do computador.

E nomes de obras? Quem sabe como é que faz? Cada revista, jornal ou site tem seu manualzinho de convenções. Ou deveria ter. Antes do Acordo Ortográfico, deveríamos citar nossos livros de cabeceira assim: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Depois do acordo, pode-se grafar Memórias póstumas de Brás Cubas, deixando as maiúsculas só onde elas devem mesmo ser. No entanto, é bom frisar que grande parte das convenções desse acordo é na base do "ou... ou", você tem a alternativa. É o caso deste problema dos nomes de obras.

Nomes de ruas, prédios, santos, como é que faz? Quem escreve Rua da Bahia está de acordo com a nova grafia? Tem multa para os dissonantes? Ah, meu Deus, Deus continua com maiúscula? Tomara que sim. Vovó não admitiria um Deus minúsculo, especialmente se for católico.

Mas vejam: corrijo nem sei quantas redações por ano e sei que as mudanças de acentuação, por exemplo, causarão pouca sensação entre os adolescentes. Em geral, eles já achavam que não precisava acentuar. É preciso pedir ao pessoal do Office para Windows que mexam nas autocorreções do Word, antes que os meninos fiquem mal nas redações. Outra curiosidade é que essa moçada já vinha tendo problemas com o hífen (que é uma das encrencas do revisor profissional). Agora, seus problemas não acabaram! Onde você pensava que tinha, não tem. Onde você punha hífen, pode tirar. Enfim, se nem mesmo o Super-Homem escapava, imaginem palavras menos conhecidas.

Mas mexer onde precisava, que era bom, não rolou. Fiz promessa e acendi vela para que reduzissem, por exemplo, os porquês a apenas um, de repente, "porque" e pronto. Não deu. Meu santo não me ouviu. Ou a briga pelas maiúsculas tomou mais tempo no debate. O fato é que esses porquês não têm razão de existir e continuam aí, firmes e fortes. Quem sabe no próximo Acordo?

Estou comentando essas agruras aí ao calor das minhas primeiríssimas impressões sobre o Acordo, neste janeiro de 2009. Agora que terei de ficar atenta aos vícios da grafia antiga, preciso me atualizar, sob pena de ficar sem serviço por algum tempo. O ensejo me permite dar uma dica: não perca tempo pensando se concorda ou se discorda do Acordo. Não se trata disso. Também não gaste energia em discussões bocós. Minha avó escreve "êlles" até hoje e vai muito bem, obrigada, mas só tirou a quarta série de grupo escolar. Nos tempos dela, não era preciso, especialmente para uma mulher, ir muito além disso. Meu tempo é outro, acho que estamos todos neste balaio ortográfico. Melhor do que tentar decorar regrinhas é ter sempre à mão um manual. Não gaste fosfato tentando aprender na marra coisas que só lhe são úteis em situações específicas. A gente aprende com eficácia quando as coisas fazem sentido para nós. O mais importante é ser desconfiado e curioso. Treine seu olhar para desconfiar da grafia dos vocábulos. Diante da dúvida, abra seu bom manual e veja como é que se faz. Pronto. Só para não dizerem que deixei tudo no ar, tenho trabalhado com dois manuais que me atendem prontamente: O novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa, do prof. Maurício Silva, e Escrevendo pela nova ortografia, assinado pelo Instituto Antônio Houaiss, sob coordenação de José Carlos de Azeredo. Vale o investimento. Se pintar dúvida, é só usar seus dotes de detetive.

Nota do Editor
Leia também Especial "Reforma Ortográfica".

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 9/1/2009

 

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