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Quarta-feira, 7/11/2001
Fragilidade, teu nome é ser humano!
Paulo Polzonoff Jr

Daniela Mountain

Se você lê constantemente este Digestivo Cultural, provavelmente você pense no site como um licor. Pois hoje eu pretendo lhe dar uma pinga. Você escolhe a marca, mas a dose não pode custar mais que R$ 0,50.

Estava relendo uns contos do Rubem Fonseca. Fiquei pensando no que o Paulo Salles havia me dito há alguns dias, sobre a pretensa erudição do escritor, e fui dar uma conferida. Gosto do Rubem Fonseca e, para ser sincero, não vejo muito desta pretensa erudição, como a que critiquei em Umberto Eco. Não fui muito além no livro. Li uns três contos de O Prisioneiro e larguei-o: tinha um compromisso a la Rubem Fonseca.

Corre a lenda que o escritor carioca, que já foi delegado, para escrever um de seus contos mais famosos, A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro, morou alguns dias nas ruas, com mendigos. Não sei se isso é verdade e tampouco me importa. Fato é que nossos escritores, salvo raras e benditas exceções, vivem de muita teoria. E acabam criando situações que se destacam tão-somente pela falsidade. É que vislumbrar a realidade é algo que requer sobretudo estômago de nós, os autoproclamados letrados.

João Antônio é o nome mais famoso de uma literatura dita real. O escritor do submundo paulista em Perus, Malagueta & Bacanaço, garantem-me, viveu intensamente o mundo “ralé” que descreveu. Bukowsky (que eu, particularmente, não consigo ler em sã consciência) foi um bêbado, promíscuo e, com o perdão da palavra, um fudido, exatamente como se descreve nos contos e novelas que o tornaram famoso. Usando um contraponto, temos a nossa super-hiper-ultravalorizada Patricinha Melo, que acabou de lançar um livrinho chamado Inferno, no qual tem a pretensão de retratar o tráfico de drogas carioca. A moçoila assumiu, contudo, que jamais pisou num morro. Sua visão, portanto, é a da classe-média, protegida por porteiros 24 horas nos condomínios da Tijuca.

Não é meu papel, aqui, condenar quem vive deste tipo de literatura. A verdade é que é muito mais cômodo viver de ficção e, como disse anteriormente, para tentar subverter isso é necessário ter estômago. A gente, quando está na rua à noite, vendo prostitutas, travestis e otras cositas, começa a pensar, instintivamente, em um monte de coisas, como direi, fictícias. No sábado, quando fiz minha incursão primeira neste mundo, pensei em Nietzsche, Shakespeare, Hannah Arendt, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Machado de Assis e mais um monte desses nomes que a gente empunha com orgulho naqueles bares londrinos que gostamos de freqüentar, ouvindo jazz e bebendo Guinness.

A noite começou num bar na rua Marechal Floriano, num buteco (com u mesmo) típico de qualquer lugar do Brasil: três máquinas caça-níqueis, duas mesas de bilhar, a parede forrada de bebidas dos mais diversos tipos, cores e odores, quadros na parede (uma paisagem típica do Paraná, uma marina a la Cézanne e uma gravura abstrata — pelo menos parecia abstrata depois de algumas doses). Sentamos e pedimos cerveja. E começamos a conversar sobre nossas expectativas quanto à noite que estava por vir. Aquele buteco seria o palco do nosso fim de noite.

Nossa primeira parada seria numa boate chamada Whiskadão, perto da minha casa. Não foi um lugar escolhido a esmo. Eu sempre passava por ali e via o tipo dos freqüentadores. Era um lugar diferente o suficiente para nos dar um banho de realidade, mas light o suficiente para não nos pôr em perigo. Chegamos cedo demais. O lugar estava vazio. Vasculhamos a primeira pista. Algumas meninas, de no máximo 21 anos, dançavam ao som de um pagode que, sinceramente, não saberia identificar. A pista é rodeada de uns estofados em corino bege, nos quais se sentam os meninos, tal qual numa destas festas de garagem que são comuns na pré-adolescência. Passamos pelo bar. Os preços me chamam a atenção. Tudo é muito barato. Uma caipirinha, por exemplo (e da melhor, de vodca Orloff), custa R$ 2,50. No cardápio não há uísques maravilhosos, só Natu Nobilis. E há também chocolates e chicletes, o que denunciam ser aquele um lugar tipicamente adolescente. Depois do bar, vamos à pista 3, a de música techno. Esse tum-tum-tum insuportável que eu tenho por barulho. Poucas pessoas ainda, mas a estrutura é a mesma da pista 1.

Ficamos andando de um lado para o outro, como que perdidos. Entre as pistas, há uma lanchonete com aquelas mesas de praia, de plástico branco. O cheese-salada, ou melhor, x-salada, custa R$ 1,50. Resolvemos nos fixar na pista 3. Compro uma caipirinha de Orloff, que me soa a menos perniciosa. O que mais me chama a atenção, a princípio, é que os meninos é que fazem coreografias. Para mim, leigo no assunto, o normal é que as meninas fizessem coreografias. Aquela coisa de dança do acasalamento. A indumentária dos meninos é, no mínimo, curiosa: tênis, obviamente, calças larguíssimas e camisetas surf. Alguns não dispensam acessórios interessantes, como o indefectível boné e mochilas nas costas.

Depois de olhar as pessoas dançarem ao som de tum-tum-tum, fomos para outro tipo de tum-tum-tum, o do pagode na pista 1. Está lotada. Todos, meninos e meninas, sabem as coreografias das danças. Chama-nos a atenção uma menina de seus vinte anos. Usa uma calça jeans grudada no corpo e uma blusinha marrom. Seu corpo é lindíssimo e ela sabe “dançar” (o termo nunca foi menos exato) eroticamente, como convém, ao som deste tipo de música. Um dos amigos que me acompanhava resolveu ir conversar com a moça. Ora, não o condenem. Chegou perto dela e ela nem deixou que ele terminasse a cantada; foi dando quatro passos para trás, com um olho esbugalhado, assustadíssima. Aqui, a primeira lição da noite.

Aquele lugar era, ao contrário do que nossa imaginação classe-média queria fazer crer, um verdadeiro reduto de ingenuidade. Tivemos já pistas disso, mas não atentamos. Aquele clima era de festa de garagem — e isso já dizia muito. As meninas que ali dançavam faziam isso mesmo: dançavam. Balançavam o corpo e, se a nós, homens, isso parecia insinuante, problema nosso. O negócio delas era dançar. Não foi só o caso da menina de jeans que nos alertara para isso. Havia outros exemplos que não cito aqui porque seria me alongar demais. Os meninos, por sua vez, ali estavam para olhar, para dançar também. Não havia aquela cumplicidade a que estamos (estou? só eu?) acostumados em barzinhos classe-média. O jogo, por assim dizer, era mais sutil.

Pista 1, pista 3, pista 1, pista 3. Parecíamos três baratas-tontas, de uma pista a outra. O volume de informação era grande demais para ser digerido em uma só noite. Melhor sair dali, passar logo para a segunda parte da noite, que julgávamos, erradamente, ser a última.

Disse ali atrás que nossa noite havia começado no butecão. Enganei-me. Havia começado um tantinho antes de entrarmos no Whiskadão. Andando pelo centro de Curitiba, visitamos a rua Cruz Machado, ponto de médio-meretrício, com uns inferninhos suspeitos. Não entramos, apenas vislumbramos a entrada e conversamos com os porteiros. A entrada custava R$ 5. Um dos porteiros nos disse que tinha quartos ali mesmo na boate.

Apesar da minha idade, confesso que jamais havia entrado num inferninho. Jamais havia visto um strip na minha vida. Jamais tive contato com uma prostituta, a não ser quando vou para casa, à tarde, atravesso o Passeio Público, e sou obrigado a escutar convites das que ficam por ali procurando clientes. Como vêem, aquela incursão até que bem leve pela noite curitibana, era cheia de descobertas.

Retomando: depois do Whiskadão, o antro da ingenuidade adolescente, entramos na boate Lido, aquilo que eu julgava ser o antro do pecado. A entrada custava R$ 5. Na porta já fomos interpelados por um garçom, que nos ofereceu cerveja. Aceitamos, que se há de fazer se não beber. Eu estava bastante nervoso. No palco, uma das profissionais fazia um strip. Coisa bizarra. Em mim, uma obrigação de me sentir excitado, de me sentir homem cercado de sexo por todos os lados. Ao contrário, porém, comecei a ficar mais e mais constrangido (graças a deus a caipirinha estava fazendo efeito) e intimidado. Sentamos numa mesa e ficamos conversando. Para minha surpresa, talvez, meus amigos compartilhavam do não-excitamento do lugar. Não se sentiam constrangidos como eu, mas compartilhavam de certa indiferença para com as stripers (eufemismo estranho, não?).

Saímos dali, eu particularmente confuso. Estava certo de que havia um submundo (supermundo?) que não conhecia e que precisava chafurdar mais nesta cultura. Do inferninho (prostíbulo?) fomos para o butecão do começo da noite. Lá pedimos mais cerveja. Só mais uma. Havia dois casais jogando bilhar. Ao nosso lado, um homem com um boné e cabelinho chanel bebia sua cervejinha também. No rádio, o dono do bar colocou Raul Seixas. Todos começamos a cantar, celebrando o fim de uma noite estranha com uma atitude estranha. O cara ao lado, alcunhado Maradona, começou a falar que havia conhecido Raul Seixas e que isso e que aquilo.

No caminho de casa, ainda, e para coroar a estranheza da noite, começamos a relembrar os fatos. O nome de uma prostituta de abraçara meu amigo era Natasha. Ele, então, disse: “Mulher, teu nome é Natasha”. Rimos da piada intelectual sem graça. E então tentamos nos lembrar do verso shakespeariano que meu amigo tentara parodiar. Deu branco geral. Tivemos que subir até meu apartamento, pegar uma versão de Hamlet e lermos: Fragilidade, teu nome é mulher.

Fragilidade, teu nome é ser humano, concluímos, entre risadas, referindo-nos, provavelmente, a nós mesmos. Daí a ligarmos as situações da noite aos contos de Rubem Fonseca, João Antônio, Clarice Lispector e até Bukowsky, foi um passo. E voltamos a viver de literatura. E voltamos a viver de ficção. Danados.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 7/11/2001

 

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