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Segunda-feira, 9/2/2009
Por que Edward Bloom?
Eduardo Mineo

Porque é pelo menos um bom nome. Soa bem. E isso é o que importa. Vocês não sentem pena de quem não tem um bom nome? Quem não tem um bom nome já começou errado. "Ah, esse é seu nome? Não faz mal, daremos um jeito nisso", disse alguém da Warner em A star is born quando uma garota de nome feio se apresenta. Acho até válido formar opiniões sobre alguém se baseando apenas em seu nome. Posso parecer indelicado, mas no nome está contida a essência da formação de uma pessoa, pois denuncia o bom senso e os conceitos de seus pais. Além disso, o nome influi no comportamento de cada um. O teor cômico de Joaquim Maria, por exemplo, teria arruinado para sempre a vida de Machado de Assis, se ele não o escondesse frequentemente. Na infância, seria alvo de chacota dos outros garotos, roubariam seu lanchinho. Ter um coleguinha chamado Machado de Assis é perfeitamente normal, vai dizer que não? Já Joaquim Maria é zoeira na certa. E futuramente teria sérios problemas profissionais, uma vez que um editor sensato jamais publicaria o livro de alguém com esse nome. Diante da capa de seu exemplar, o editor sensato alisaria seu espesso bigode e diria "Joaquim Maria? Mas que porra de nome é esse?", e tudo estaria acabado. Portanto, escolhi Edward Bloom como pseudônimo para escrever na internet antes de começar esta coluna no Digestivo Cultural. E agora que estou deixando de ser colunista aqui, queria colocar os acentos nos porquês ― e ai do Rafael Rodrigues, editor-assistente e grande entusiasta da reforma, de tirá-los. Ouviu? Ahn? Ahn?

Antes de prosseguirmos, coloquemos nossas fucinheiras e vamos à minha demissão da coluna.

Acredito que, se Deus existir, deve ser um tipo de taxista bêbado que acha que sabe mais que você sobre sua vida. "Acho que era pra entrar ali", você diz, mas Deus não ouve, não vai ouvir. Você então xinga, esperneia, diz que não vai pagar: tudo em vão. Agora você já passou cinco quadras e não tem mais retorno. No meu caso aqui, o taxista passou reto mais uma vez e acabei não conseguindo encontrar um retorno para minha vida nesta coluna. Chegou a hora do adeus.

Ou talvez não seja tão dramático assim. Nada dura para sempre, mas as coisas podem durar bastante; depende das partes. A resposta padrão nesta situação é a de que ando ocupado demais com meus afazeres pessoais, o que não deixa de ser verdade, mas não vou usar essa desculpa esfarrapada para meu relapso com a coluna. Escrever nunca me foi natural; tenho que me esforçar demais: este é o fato. Leio e escrevo porque é uma das últimas coisas que ainda me dão algum divertimento sincero, uma forma de me orgulhar de mim mesmo após cada frase espertinha, após cada comentário mal-educado. Porém, meu negócio é outro; minha cabeça só funciona do outro lado. Ou seja, não é justo com o Digestivo Cultural deixar o vácuo na coluna que eu estava deixando. E também não é justo com pessoas que conseguiriam contribuir muito mais do que eu. Não vou empurrar com a barriga.

Agora minha consciência está pulando no meu ombro para que eu fale sobre Big Fish, filme que conta a vida de Edward Bloom, dono do meu pseudônimo. É um filme bonito, suave, de bom gosto. A total ausência de atores brasileiros reforça o que eu disse. É um filme muito bom, mesmo. E tem roubo a banco, bruxa, guerra, gigante, soco na cara, pessoas sendo atiradas por canhões, enfim, tudo muito legal. E o Bloom. Ele é um velhinho todo simpático que tem um filho idiota, que é o que os filhos são. Acho curiosa essa capacidade dos pais em ver seus filhos, que há pouco babavam, agora revirando os olhos pra eles sem dar-lhes um murro na boca. O maior insulto à dignidade de um homem é um piá remelento revirando os olhos para ele por considerá-lo obsoleto, como se andar de calça arriada fosse parâmetro de atualidade, parâmetro de alguma coisa. Passei boa parte da minha vida revirando os olhos para meu pai e hoje penso que, se tivesse que viver novamente minha adolescência, gastaria toda ela me dando murros na boca. Mas, enfim, o Bloom não esmurra seu filho. Deveria, deveria pelo menos um pouquinho, mas não.

Também é verdade que algumas cenas são sentimentais demais. São cenas bem feitas, bem trabalhadas, mas sentimentais demais e exigem um pouco de autocontrole para não se correr o risco de lhe flagrarem tremendo o queixo com olhinhos de piedade. Seria ridículo, pelo amor de Deus, comporte-se. Mas tem boas cenas de humor também, de bom humor. Tem uma cena, a minha preferida, que o Bloom está caminhando pela rua quando vê um cachorro fazendo cocô e pensa consigo "Aí está a essência do modernismo!". Ele ri sozinho e continua caminhando, contente e superior.

Tudo bem, eu inventei essa cena, mas eu gostaria de vê-la com Albert Finney. Me tornaria mais feliz, eu acho (não tanto quanto se eu comprasse a Suécia, digamos, mas ficaria feliz, sim). Gosto da pessoa que Finney criou para Edward Bloom; me identifiquei bastante com ela. Não é como o pai do Andrew, de War and Peace, que eu não me identifico, mas considero como modelo. É diferente. O pai de Andrew é um modelo de pessoa, de pai, de como alguém deve tratar seu filho, de como demonstrar afeição e ao mesmo tempo rigidez, mas sem se portar como um retardado ou um estúpido. Quando Andrew se despede para ir à guerra, seu pai diz a única coisa que um pai poderia dizer a um filho nessa situação:

"Remember this, Prince Andrew, if they kill you, it will hurt me, your old father (...) but if I hear that you have not behaved like a son of Nicholas Bolkónski, I shall be ashamed!"

(Tradução: "Lembre-se disto, Príncipe Andrew, se eles o matarem, isto me machucará, seu velho pai (...), mas se eu ouvir que você não se comportou como um filho de Nicholas Bolkónski, eu sentirei vergonha!")

Todo pai deveria ter o direito de dizer isso, um dia. Faria de qualquer moleque remelento e com calça arriada, um homem de verdade.

Já com Bloom, há de fato uma identificação; me vejo nele durante todo o tempo. Tenho o mesmo temperamento, o mesmo senso de humor, a mesma fidelidade e com certeza também faria as mesmas bobagens que ele fez durante o filme, como ficar três anos sem falar com um filho besta ou tomar a maior surra do mundo para poder pedir uma garota em casamento. Assista ao filme e eu sou mais ou menos aquilo lá: um pouco mais novo, um pouco mais baixo, um pouco mais gordo, mas ainda aquilo lá. E digo isso alisando meu espesso bigode de gente sensata e que tem um bom nome, pelo menos.

Eduardo Mineo
São Paulo, 9/2/2009

 

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