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Segunda-feira, 2/3/2009
Um dândi na bolha do tempo
Pilar Fazito

Estou no fim do mundo. Ou quase. Desde que vieram com esse papo de que a Terra é redonda, o início emenda com o fim e a coisa fica cíclica, de forma que a gente não sabe mais onde o planeta acaba. Então, não sei bem se posso dizer que estou no fim do mundo. Mas o certo é que estou num lugar em que o tempo parece ter parado. Perdida em meio à Chapada Diamantina, numa cidadezinha simpática, feita de pedras e de pessoas que cantam enquanto andam, crianças que brincam de amarelinha, cães que tomam sol no meio da rua o dia inteiro porque carro, aqui, necas de pitibiriba, e casas que vivem de portas e janelas abertas.

Neste universo paralelo existe um único telefone público e uma única lan house que pode ser qualificada, no mínimo, de insólita. São apenas dois computadores à disposição dos habitantes. Mais do que o suficiente para os poucos e tranquilos moradores de Igatu. Logo na entrada um cartaz explica as regras de uso: é proibido entrar em sites pornôs e criança só pode usar a internet fora do horário de aula. Em frente à lan house do João, existe uma loja de não-sei-o-quê, cuja plaquinha diz: "entre aqui e compre alguma coisa". Não dá para entender quais são os produtos à venda, já que eu não atendi ao apelo. Não foi por falta de querer, mas é que, toda vez que passo em frente ao lugar, o Amarildo não está. Aliás, não conheci pessoalmente o Amarildo, mas soube que é conhecido não só na cidade como também nas redondezas por ser o fã número um da Xuxa. Dizem que até a Camila Pitanga, quando passou por estas bandas, ficou impressionada com a dedicação dele pela rainha dos baixinhos e, assim como a Vânia, dona de uma simpática pousada, teve vontade de promover, facilitar ou até financiar o encontro com a loura.

Uma semana em cidade pequena basta para a gente saber de tudo o que se passa, conhecer as pessoas e os vira-latas pelo nome e saber da vida alheia. Nesses lugares, o tempo parece que parou ou foi metido dentro de uma grande bolha de sabão. Gente de cidade grande vira bicho esquisito em pouco tempo e depois acha graça de um estilo de vida simples como este, que deveria ser considerado normal. Aí, chega querendo se enturmar logo e acha que pode se tornar "um deles" com duas ou três doses de pinga, ou depois de passar uma tarde jogando conversa fora na soleira da porta.

Algumas pessoas não podem. Por mais que se esforcem, por mais que gostem de admirar a natureza, pegar uma trilha de terra aos sábados, uma cachoeira aos domingos, que se encantem com o cheiro de terra molhada, existem aqueles que não se dão muito bem quando se trata de escolher as serras em detrimento das cidades. É que depois de uma certa idade, fica difícil se adaptar a um estilo de vida mais... rústico? Não é questão de frescura, veja bem. Nem todo dândi é dândi porque quer. Uns, como eu, têm hérnia de disco. E vai botar essa gente para escalar pedras, fazer rafting, sentar em troncos de árvore ou dormir em redes... Não dá. É preciso respeitar o limite do corpo, o que não quer dizer que eu não seja capaz de andar um dia inteiro - em terreno plano, que fique bem entendido.

Outra coisa problemática para um dândi em cidadezinhas como esta é que a gente sempre se dá mal até quando faz o bem. Ontem, por exemplo, passei em frente a um muro alto, sobre o qual estava um menininho muito simpático que me pediu ajuda para descer. Maldita educação católica que nessas horas buzina na nossa consciência um "faça o bem sem perguntar a quem". Pergunte! Sempre pergunte! E dependendo da resposta, vá cuidar da sua vida. Eu não perguntei e veja no que deu: querendo ser gentil, ajudei o peralta a descer do muro, depois tomei meu rumo. Quando voltava para a pousada, já mais tarde, topei com a mãe do garoto. No meio da rua, levei um safanão bastante assustador e custei a entender por que, em vez de agradecer a ajuda que dei ao filho, a mulher reclamava e me xingava até a quinta geração. Ela dizia que eu não poderia ter feito isso porque o menino estava de castigo, por ter jogado pedras na casa de não sei quem. Eu disse que não sabia e pedi desculpas, mas ela foi arrastando o recalcitrante mirim pelo bracinho, falando que não havia desculpas para o que eu tinha feito.

Eu queria ter um ego mais bem resolvido para não me deixar afetar por esse tipo de coisa, mas confesso que fico aborrecida por dias até conseguir mandar tudo para as cucuias. A questão é que, por ter facilitado a fuga de um foragido da justiça materna - mais implacável do que qualquer outra -, não obtive perdão. Ainda tentei argumentar, dizendo que não sabia da condição do menino, mas a mãe babava e falava que ele só tinha cinco anos e que eu não poderia ter feito o que fiz. Então, meu coleguinha criminoso rebateu ofendido para ela: "eu não tenho cinco anos, tenho quatro!", como se isso bastasse para impor mais respeito. Foi a única frase disso tudo que me fez ter vontade de rir e achar que valeu a pena ter ajudado o mocinho.

Enfim, a mãe foi. O boyzinho foi. E eu fiquei arrasada no meio da rua. Mas hoje já estou indo também. Quem sabe eu consiga deixar para trás esse sentimento ruim de quando a gente é mal compreendido e não sabe o que poderia ter feito de diferente. Quando eu voltar a esta cidadezinha, certamente, isso já terá se diluído em meio às histórias e aos fantasmas que cobrem as paredes e as ruínas de pedras, remanescentes da época do garimpo. O Amarildo já terá conhecido a Xuxa pessoalmente e Igatu continuará a ser esta simpática bolha temporal, onde os vira-latas têm nomes.

Pilar Fazito
Igatu, 2/3/2009

 

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