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Sexta-feira, 10/4/2009
Amor platônico
Ana Elisa Ribeiro

Diz-se, popularmente, do amor não vivido, digo, que não foi efetivamente vivido, com direito a toque e outras implicações palpáveis. Diz-se de quando a gente se apaixona por alguém e fica só nisso, sem a respectiva realização ou o contato com o indivíduo-alvo. Diz-se de quando um gosta do outro, mas o outro não sabe do um. Quando a gente é criança, diz-se de quando nos apaixonamos pelo coleguinha e o namoramos, mas ele não sabe. Quando somos jovens, diz-se daquela paixonite pelo menino (ou pela menina) da outra sala, do bairro, amigo do primo, colega da irmã etc., que nos faz ficar meio bobos e tímidos. Quando somos adultos, diz-se daquela timidez insuportável que nos impede de abrir o jogo, dar uma cantada fatal, dar uns pegas, ir à luta, tentar. Quando somos velhos, não sei o que isso vira. Provavelmente, arrependimento. Ou talvez uns lapsos desses que deixam a gente com ar pensativo por uns minutos.

Amor platônico é uma expressão do senso comum que, dizem os especialistas em filosofia, não quer dizer o que a gente, popularmente, acha que quer dizer. Os sentidos, no entanto, são construídos socialmente, então vamos considerar que amor platônico seja isso mesmo que estamos pensando que é. Não chamemos à baila Platão, pensador que deu nome à coisa, porque ele mal sabe que o que ele disse virou expressão popular para timidez excessiva ou para medo de pegar o boi pelo chifre (melhor não falar em chifre...).

Amor platônico é, então, para todos os efeitos, uma dessas histórias que todos nós vivemos. Ou melhor: não vivemos. Quero dizer: vivemos sim, muito embora ela possa ter sido vivida apenas por um dos componentes do casal (não-casal). Quem não tem lembrança de algo assim? Que graça a vida teria sem isso? Se todo amor fosse realizado na forma de um ficar, de um namoro, de uma transa, de um noivado, o que restaria à memória? E se todo amor virasse casamento, o que restaria das relações? Talvez os casamentos acabassem de vez com todas elas.

As possibilidades do amor platônico são muitas e muito vivas. A espera, a ansiedade e o calor que o amor platônico surte são especialmente memoráveis. O medo do "não", o ciúme, a sabotagem, a inveja do parceiro real do outro são sensações inigualáveis. O "e se..." que atazana o resto da vida. E se tivéssemos nos conhecido antes? E se tivéssemos nos encontrado depois? E se fôssemos mais velhos? Mais novos? Solteiros? E se não tivéssemos filhos? E se tivéssemos namorado quando jovens? E se não fosse assim, mas fosse assado? Por que não dei valor naquela época? Ou eu era feliz e não sabia.

Tudo falso. Como assim? É que quando a vida parece boa no presente, o passado é apenas um filme antigo. Mas quando a vida está ruim hoje, o passado se transforma numa espécie de paraíso perdido. Relacionamentos que não foram bons tornam-se lembranças maquiadas. Pessoas que não eram bacanas viram a salvação do universo. O sexo ruim, o papo fraco, os planos incompatíveis são esquecidos. A memória só resgata a gentileza, os presentes, o carro caro e os shows em boas casas de espetáculos.

Quem não viveu isso? Quem não teve um colega de colégio que aparece até hoje entre as lembranças mais gostosas? Quem não teve um vizinho cobiçado pelo bairro inteiro, mas que sempre namorava a menina mais cobiçada do bairro inteiro (e ela não era você)? Quem se esquece do coleguinha de jardim de infância que roubou o primeiro beijo? Meu coleguinha se chamava Juninho, mas não me lembro mais do rosto dele. Se o vir na rua hoje, certamente não saberei quem é, mas me lembro de nós dois embaixo da mesa da sala de aula. No ensino fundamental (que chamávamos de Grupo), a menina mais bonita era a Nádia. Era mais alta e mais roliça, além de ser loura e de usar sutiã. A despeito da existência dela, o Patrick oferecia uns olhares para mim. No ensino fundamental (o colégio), lembro do Fábio e que mantínhamos uma relação de amor e ódio. Nada de toques, de beijos, de abraços. Nada de gracinhas. Apenas o coração disparado quando ele chegava na sala, com a mochila nos ombros, e outro disparo quando ele não vinha à aula. O dia ficava cinza. O dia esmaecia.

No ensino médio, o Roger, do cabelo grande, roqueiro, bruto. Sequer sabia que eu existia ali na sala ao lado. Gostava de futebol, tinha um carro branco, era repetente. Parecia um desses bad boys de filme americano que passam na Sessão da Tarde. Nunca sequer um olhar mais demorado. E a dor de quando ele deu carona para a Fabíola, campeã de ginástica aeróbica e malhada como uma fisiculturista.

Depois do colégio, o cursinho. Depois do cursinho, a faculdade e o campus universitário. Ao longo de uma vida, a impressão de que este ou aquele trazia uma promessa de felicidade no bolso. Concomitantemente, as relações reais, que sempre pareciam piores, porque traziam, junto com os beijos, as brigas, as incompatibilidades, as picuinhas.

O amor platônico é sempre melhor do que os outros. Ele não custa, não gasta, não entristece. Quando ele passa, ele vira relíquia. O amor de verdade, quando passa, deixa cacos. Quando o namoro de verdade termina, ele exige de nós uma espécie de reconstituição. Leva um tempo a gente parar de falar no outro, parar de lembrar de eventos, parar de mencionar e parar de querer saber se ele já está namorando de novo, casou ou teve filhos. Demorei uns anos a me acostumar com o casamento do ex-namorado mais importante. Demorei uns anos para parar de olhar para as luzes na janela da cobertura do prédio na rua Dias Adorno. Ou parar de verificar se o Gol GTI estava na garagem. Ou parar de olhar para os lados quando descia a Olavo Andrade. Parar de reparar se havia um carro de polícia na porta. Parar de reparar se alguém atravessava a rua de jaleco na região hospitalar.

A gente vai morrendo um pouco quando os amores não dão certo. A gente tem novas oportunidades quando um outro amor começa. Mesmo que a comparação seja inevitável, é importante mudar de canal. Mas os amores que não acontecem, ah, estes são imbatíveis. Eles só deixam lembranças do que não aconteceu, do que foi apenas desejado e do que ninguém pode comprovar. Não há retratos, não há cartas, não há anéis. Só há um suspiro de "quem me dera".

Só conheço uma pessoa que reencontrou um namorado da juventude e resolveu viver tudo para valer depois da meia-idade. Largou marido, casa e tudo para se casar de novo. Ao longo da vida, mesmo casada com outro, ela sempre agarrava a oportunidade de falar daquele longínquo rapaz, lembrar e dizer que aquela relação frustrada poderia ter sido a melhor delas. De fato, décadas depois, quando ela o encontrou na padaria, ele já era viúvo e estava disposto a retomar o namoro de onde eles haviam parado. Interessante: ambos tinham filhas com os mesmos nomes. Vai saber que sintonia estranha é essa. No entanto, ter essas histórias e vivê-la faz a vida arder, de vez em quando, mesmo quando tudo não passa de lembrança. O amor vivido dá muito mais trabalho do que o amor que a gente constrói com o desejo e com o imaginário, que acabam sufocados quando a vida é de verdade.

Nota da Autora
Esta crônica é para a Perla.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 10/4/2009

 

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