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Quarta-feira, 11/3/2009
Entre a simulação e a brincadeira
Guilherme Pontes Coelho

É sempre uma sensação sem adjetivos ver televisão ― para quem não tem esse hábito. É uma coisa muito bizarra, na verdade. Precisei de um certo tempo de aclimatação. Depois de um longo jejum, me rendi à tevê aberta. Quando já me sentia preparado, mergulhei na infinitude da tevê por assinatura. Óbvio, como você já deve saber, é tudo muito mais legal. E mesmo não sendo, os canais animais são sempre a salvação da telelavoura quando não há nada muito interessante. Eu achava que esse fenômeno só existia na tevê aberta.

Enfim, hoje vejo tevê. Já adquiri até uns vícios. Law & Order: Special Victims Unit, por exemplo. Mas continuo me sentindo um alienígena diante dela. Não é possível que eu viva no mesmo mundo daquelas pessoas que fazem aquelas mágicas acontecerem: as atrações. Por exemplo, vi na Oprah uma mulher que deixou a filha de dois anos dentro do carro e foi trabalhar. A menina ficou lá oito horas, sob o calor do verão. Morreu. Até aí eu estava impressionado com o lado humano da coisa, espantado com o fato de uma mãe esquecer a própria bebê dentro do carro, no estacionamento do trabalho. Então me chamou a atenção a maneira como o show acontecia.

Era a primeira vez que via a Oprah, até então só a conhecia de ouvir falar e do adesivo na capa do meu Faulkner, "Oprah's Book Club". Fiquei com a impressão de que ela era uma mistura de Marília Gabriela com Regina Volpato. Não sei se quero permanecer com essa impressão, porque logo depois da história da menina ser parcialmente contada apareceu a mãe no sofá da Oprah para narrar o final, como ela achou a própria filha morta e o que aconteceu depois, o que me deixou extremamente constrangido no meu sofá. Mais, fizeram mais. Veicularam o áudio das ligações para o 911, a descrição que gente desesperada fazia à polícia de uma menina de dois anos sob os efeitos implacáveis da hipertermia (oito horas dentro de um carro, presa ao bebê-conforto). A mãe ali, no sofá, em frente à Oprah, ouvindo tudo pela primeira vez, assim como nós. Tudo bem que ela, a mãe, escolheu estar lá, mas nada ameniza a vileza do espetáculo em todo o conjunto: a exposição, a audiência, o julgamento.

Julgamento porque muitas vezes esses programas de terapia familiar, sei lá como se autodenominam, funcionam mesmo como um tribunal midiático. De mentirinha, mas tribunal. A classe da Regina Volpato e a vulgaridade da Márcia Goldschmidt, no fim das contas, acabam como farinha do mesmo saco, condenando e absolvendo os réus televisivos. Até lembro aqui da Oprah, em relação àquela mãe, dizendo que "isso poderia acontecer com você também". Não, Oprah, essa irresponsabilidade jamais... Ups, olha eu julgando a coitada. Eu, você e aquela mãe fazemos parte do mesmo universo, mas a Oprah, não. Ela é da televisão... (Imagine um tom conspiratório nessas reticências.)

Essa realidade toda na tevê dá náuseas. Não me refiro à realidade dos noticiários, porque essa a gente conhece bem ― seja pelo evento noticiado, seja pela ideologia com que foi noticiado ―, mas àquela fabricada lá pela gangue das Oprahs. Não é propriamente ficção, mas também não é realidade. Um espetáculo confuso. Não quero me alongar muito em investigações à Baudrillard sobre essa pseudorealidade porque seria pesadamente chato. Esse tópico, porém, me lembra outro telepecado de minha parte, os reality shows.

Por um lado, o real vai à tevê mediante a exposição infame de toda sorte de eventos, tendo como exemplo os auditórios terapêuticos (ainda não sei como nomear essas coisas). Por outro, o real vem da tevê para o imaginário da realidade. Mesmo sem conseguir livrar você desse linguajar baudrillardeano, este é o caso dos reality shows.

Há coisas acontecendo ali, num único plano. São interessantes de ver porque, na maioria dos casos, envolvem competição. Competição envolve habilidades e obstáculos. O que nos leva à ululante torcida. A gente se envolve com a coisa. É quase um esporte. Curiosamente, o reality show de maior sucesso aqui no Brasil não exige habilidade alguma, a não ser coragem para ser estúpido e naturalidade para ser dissimulado, não precisando ser ator/atriz para tal. Mesmo assim, há torcidas e envolvimentos e culto a herois. Ninguém entende isso, um programa ocioso que lembra aquelas salas de castigo para crianças desobedientes.

Particularmente, eu não entendo como funciona um programa desses do ponto de vista do telespectador. Os critérios de cada um para escolher seus mocinhos são loucamente subjetivos. É quase como esperar pela famosa química. Parece coisa de mundo real. Ah, começo a entender...

Enfim, subjetividades midiáticas (que expressão insólita!) à parte, é interessante, sim, ver como os reality shows, cujo apelo está em se vender como real, são, na verdade, jogos, brincadeiras que pendem da simulação à dissimulação e vice-versa. Particularmente, quando ligo a tevê acho melhor crer que o espírito de Huizinga paira sobre o plasma, não o de Baudrillard. Se a tevê simula uma brincadeira, brinque com a simulação. É a melhor maneira de curtir o entretenimento televisivo.

P.S.: Na opinião do autor, o melhor reality show já criado foi Ultimate Fighter. Isso, sim, é que é entretenimento de verdade.

Para ir além





Guilherme Pontes Coelho
Brasília, 11/3/2009

 

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