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Quarta-feira, 25/3/2009
A Crise da música ― Parte 1/3
Rafael Fernandes

Não é de hoje que o mercado da música está em crise. Se há alguns anos o papo era "salvar" a indústria, hoje já se vê que não há salvação ― ao menos para a forma como a conhecíamos. Agora a pergunta é: ainda é possível fazer a música gerar dinheiro? A resposta provável: sim. O problema é como e quanto ganhar. Em busca de caminhos, conceitos como permissão, facilitação e disseminação cada vez ganham mais força. Fazer com que as pessoas conheçam a música e achem com facilidade o que querem, com poucas restrições.

Também é preciso oferecer ao consumidor uma saída de compra legalizada, facilitada ― sem qualquer tipo de complicação ou entrave ― e a um preço atrativo. O iTunes conseguiu isso unido um hardware "cool" a uma compra segura e rápida. Recentemente avançou e baniu o DRM, esse absurdo que agride o comprador legítimo. Punir o usuário legal, seja com DRM ou proteção anticópia é uma estupidez sem tamanho. Castigam quem devia ser premiado.

A internet é tida como vilã, mas é preciso lembrar que com as rádios e TV dominadas pelo jabá e pelo comercialesco, a Web ajuda os amantes da música que querem novas opções. Parece também ser necessário oferecer vários tipos de serviço, diversificá-lo, como compra avulsa e assinatura, e em vários formatos, como premium ou até mesmo free. Dar várias opções para que o consumidor escolha o que é melhor para ele. O streaming é a palavra do momento, já que há a tendência de as pessoas fazerem menos downloads, privilegiando o consumo diretamente online, como no MySpace, YouTube, Last.fm e outros.

A ruptura de um modelo
O modelo anterior quase simplório de gravar músicas e vender cópias de discos está acabando como padrão de venda em massa. Não há um caminho certo para a atuação do novo mercado da música. O antigo padrão está ruindo há tempos e o novo apenas no início de sua construção, ainda de maneira difusa. Vejo muitas reclamações de gente da música ― músicos, compositores, empresários ― à procura de um "modelo" para a indústria. Estão com medo do imponderável, já que esse tal modelo não existe ― ele precisa ser construído. E acho difícil que seja uma forma única de atuação, como um dia foi. Para alguns, a saída é via leis de incentivo à cultura, para outros, a base de fãs, ou venda de produtos diversos (CD, livro, vinil, camisetas etc.), sincronização (disponibilizar músicas em filmes, TV etc.), micropagamentos, turnês, publicidade on-line, patrocínio direto, venda de faixas avulsas, edições especiais etc., ou tudo isso junto, ou o que ninguém conhece, ou, porque não, o colapso total.

As rupturas no mercado música vieram também com ruptura de comportamento. Não vejo grandes rupturas musicais no momento. Não que não hajam grandes artistas ― eles existem. Podem não estar tocando em rádio, ou aparecendo na TV, mas estão aí. Mas não há nada realmente novo e existe uma enxurrada de repetição. A mudança brusca é de comportamento, e é mais que um pé na porta. São comportas de hidrelétricas se abrindo. Que é a possibilidade de qualquer um gravar e se lançar, trocando músicas via internet. Não é algo de hoje, mas atualmente se evidencia. É como a possibilidade do leitor interagir com um jornalista, de escrever em seus blogs e comunidades, de publicar seu vídeo, de fazer seu site pessoal, criar frases no Twitter, produzir mash-ups, colocar as fotos no Flickr, uma declaração no Gengibre, enviar um design ao deviantART etc. Todo mundo faz tudo. É o que estamos vendo agora, de camarote: o amador e o profissional se confundem.

Excesso de oferta
É claro que isso gera um excesso de oferta, uma confusão com muitos artistas e "n" produtos. A música fica com características de commodity, com músicos e músicas muito parecidos e consequente perda de valor. Alguém pode clamar que para um amante da música, um artista não tem o mesmo valor que o outro. Concordo. Comigo acontece isso. Mas não importa. Na hora da compra, eles vão competir. E cada vez as maiores opções de nomes e produtos vão acirrar a competição pelo mercado e na escolha do consumidor, que num dado mês vai ter que optar por gastar R$ 200,00 num show do Radiohead, R$ 30,00 no novo CD do Lenine ou R$ 40,00 na biografia do Tim Maia. Para um real apreciador da música, multiplique essa conta por várias compras ao mês. Mais ainda, como afirmei (e reafirmo) numa coluna anterior, a competição não é só entre a música. É entre os artistas em si, com um filme no cinema ou em DVD, um jantar, um jogo de videogame, uma viagem, um eletroeletrônico, manutenção de um hobby etc.

E o excesso também gera, claro, o aparecimento de uma enxurrada de gente sem talento, critério, proposta nem preparo. Nos deparamos com a exaltação de idiotas como ídolos e o excesso de informação. Por outro lado, nos libertamos da prisão do funil de gravadoras. No passado, a única chance de alguém despontar era assinar com uma grande gravadora, com as suas regras. E muitas vezes, com exceções, o que imperava nas escolhas eram as regras do mercado e a moda do momento. Acho que não tem preço a possibilidade de os músicos (de talento) poderem criar por criar e andar com seus passos. O momento ainda é confuso, mas creio que os grandes saberão o que fazer. A música mudou, seu valor mudou e até diminuiu. Mas estamos numa nova era da música. Diferente e dispersa, mas prefiro enxergar e trabalhar as possibilidades a abraçar o pessimismo lembrando de um passado idealizado.

O trabalho dos músicos
Talvez seja uma tendência, talvez seja assim que a música funciona hoje e paciência. Mas não posso deixar de observar, mesmo que soe "datado", quase uma lamúria, que nessa nova era há um grande desprestígio ao trabalho da música, ao preparo, ao labor de composição e criação. Poucas pessoas sabem o que realmente acontece entre o "nada" antes da composição até o lançamento de um disco, de um registro em estúdio. Ou melhor, de um disco bem feito. Do trabalho de talhar e burilar uma canção e depois desenvolver seu arranjo. O que é um engenheiro de som e qual seu papel ― idem o produtor musical. A banalização dos métodos de gravação, ainda que permita o aparecimento de uma nova leva de profissionais e artistas, gera registros pouco criteriosos. Raros são os que entendem o que é mixagem e a executam de maneira apropriada ― idem com a masterização. Está havendo uma perda na qualidade das gravações e os consumidores nem têm se importado. Ou eu estou enganado e é uma prova do valor da música, que está em todos lugares possíveis: num grande estúdio e no quarto de um garoto. E, por outro lado, se a música perdeu parte do seu valor, é função de cada artista achar uma forma de revalorizá-la, dentro dos novos padrões do mercado.

Mas há um certo cinismo, mesmo, em especial da geração abaixo dos 25, quase um descaso em relação ao trabalho alheio. Sebastian Bach recentemente reclamou disso. Se não dá pra negar que agora o mercado é assim, também fica difícil não concordar com ele. Um grande músico brasileiro, Sergio "Serj" Buss, passou algo parecido com seu ótimo disco Liquid Piece of Me: preparou com carinho, por conta própria e por anos esse trabalho. Antes de lançá-lo foi bajulado por muita gente que dizia querer comprar o disco. Quando lançou, a decepção: mesmo se contarmos que ele atua num mercado de nicho e com pouca divulgação, que usualmente são poucos que compram em relação aos que se manifestam, a vendagem foi decepcionante. Aqueles que falavam estar ansiosos pelo lançamento ou sumiram ou vieram com desculpas esfarrapadas pela não compra do produto ― e pegaram na internet, de graça, claro. Pior, alguns ainda tentaram inverter o ônus da questão, "argumentando" de forma ridícula de que um artista deveria só fazer algo pela arte, não pelo retorno financeiro ― como se gravar algo não envolvesse custos. Novamente: talvez seja assim que o consumidor da música se comporte hoje, mas não dá pra deixar de lado essa faceta perniciosa. Repito: é função de quem trabalha com música reverter essa situação. Mas não com repressão nem pensando como antigamente, mas sim procurando novas e criativas alternativas ― como está fazendo o próprio Serj.

Nota do Autor
Em breve a parte 2 deste texto.

Rafael Fernandes
São Paulo, 25/3/2009

 

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