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Quarta-feira, 1/4/2009
A literatura em perigo
Luiz Rebinski Junior

No ensaio "Dentro da Baleia", publicado no livro de mesmo nome, George Orwell, ao comentar sobre a produção literária do início do século XX, diz que "nos círculos cultos [da Inglaterra], a arte pela arte se estendeu praticamente a uma adoração do sem sentido. Julgar um livro pelo assunto era um pecado imperdoável, e mesmo estar ciente desse assunto era considerado um deslize de bom gosto".

Além de escritor de ficção, Orwell foi também um sagaz resenhista, que não poupava seus pares na hora de tecer críticas. O que Orwell na verdade reclama em grande parte do texto, que é dedicado à análise de Trópico de Câncer, de Henry Miller, é de como as inovações técnicas que floresciam na literatura de então (com nomes como James Joyce) limitavam o diálogo das obras com o mundo real e com os problemas imediatos da sociedade. Ou, conforme Orwell escreve, de "como as inovações técnicas, ainda que importantes, estão presentes primeiramente para servir a esse propósito".

Entre outros assuntos, é disso que trata A literatura em perigo (Difel, 2009, 96 págs.), mais recente livro do historiador e ensaísta búlgaro Tzvetan Todorov. Em uma linguagem que mistura reminiscências pessoais do autor à sua experiência como professor nas universidades e escolas da França, onde vive desde os anos 1960, o ensaio não agrada apenas por passear por clássicos da literatura. A "arte pela arte", que tanto incomodava Orwell lá nos anos 1940, é o ponto central do ensaio de Todorov, que, diferentemente de Orwell, direciona suas críticas não aos escritores, mas a professores e universidades que preferem ensinar métodos literários ao invés de focar seus esforços em aproximar o estudante das obras literárias.

Em uma crítica ao estruturalismo e às correntes formalistas que se tornaram moda nos anos 1970 e que acabaram se impondo como modelo dominante do ensino da literatura, o ensaio de Todorov se opõe à prática de ensino em que os "estudos literários têm como objetivo primeiro o de nos fazer conhecer os instrumentos dos quais se servem e não o contrário". Ou seja, as formulações críticas e apreciações analíticas dos especialistas, críticos e professores se sobrepõem à própria significação das obras e de como elas dialogam com a vida real.

"Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre noções críticas, tradicionais ou modernas. Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos", diz o autor.

Esse cenário descrito por Todorov é o da escola francesa. Mas se encaixa perfeitamente em nossa realidade, em que a literatura para um jovem prestes a entrar na faculdade é apenas um calhamaço de resumos, previamente elaborado por experts, contendo todas as dicas necessárias para que o objetivo maior, a vaga na universidade, seja alcançado. É a prova mais evidente do fracasso da literatura como disciplina escolar. O que relega à literatura um papel secundário na formação intelectual do jovem, muito mais influenciado pela televisão, cinema e música.

E isso é até fácil de entender, afinal de contas, para a maioria dos jovens estudantes, a literatura não significa uma forma de compreensão do mundo, mas sim algo abstrato que ao invés de aproximar o indivíduo de seus pares, afasta-o.

Assim, a literatura ganha facilmente a pecha de "coisa chata" entre jovens secundaristas e pré-universitários. E não é para menos, pois as questões formuladas nas provas de literatura dos vestibulares brasileiros são verdadeiros tratados herméticos que duelam palmo a palmo com os escritos mais obscuros de Walter Benjamin.

É conhecida a história do escritor João Ubaldo Ribeiro, que certa vez afirmou a um entrevistador que não saberia responder algumas das perguntas, de um vestibular federal, formuladas a partir de seu clássico Viva o povo brasileiro. Ou seja, a pergunta era tão complexa que nem mesmo quem escreveu o livro saberia responder. Imagine um estudante de 18 ou 19 anos ainda em formação.

É contra essa forma de "intelectualizar" a literatura que Todorov reclama. O autor combate a ideia de que a arte não tem ligação significativa com o mundo e que, portanto, a literatura deve ser reduzida apenas a seus aspectos literários, falando exclusivamente para si mesma. E é desse perigo que se refere o título do ensaio. Do perigo de ver a literatura não mais como protagonista do processo educacional, mas apenas como alicerce de teorias. Pois, afinal, qual é o propósito da literatura? Para essa pergunta, Todorov tem várias e apaixonadas respostas.

"A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos faz compreender melhor o mundo e nos ajuda a viver".

A reflexão de Todorov acerca do ensino da literatura nas universidades vai de encontro a um problema comum às nossas escolas: alunos entram na faculdade de letras com o único objetivo de se especializar em determinada língua estrangeira ou de serem professores de português. Decisão, claro, que a grade curricular do curso ajuda a corroborar. Assim, a literatura em seu estado bruto ― leia-se a leitura de romances, peças, contos etc. ― fica relegada a um segundo plano. Isso afetará diretamente a forma ― fria, imagina-se ― com que os alunos desses educadores vão se relacionar com a literatura.

Estudar os métodos utilizados, com grande maestria, por Dostoiévski para conceber obras como Crime e castigo ou O idiota certamente é de grande serventia para compreender os meandros da escrita do gênio russo. Mas a leitura de seus romances provavelmente explicará mais sobre a gênese de sua obra do que qualquer estudo crítico. E é essa a mensagem que Todorov nos deixa: a literatura é simples, e por isso tão bela.

Para ir além





Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 1/4/2009

 

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