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Sexta-feira, 9/11/2001
Por trás da cortina de ferro
Rafael Azevedo

Uma das melhores coisas de uma viagem minha ao inferno paradisíaco de Miami há uns anos atrás foi a ópera (opereta, me corrige o pedante) de Shostakovitch que lá comprei - mais uma demonstração da esmagadora superioridade do nível de vida de quem vive num lugar minimamente civilizado, quando comparado com quem habita estes rincões tropicais como o nosso, onde o capitalismo ainda mal chegou: quando poderia comprá-la aqui? As absurdas taxas e o desinteresse das lojas de CD brasileiras mantêm-nos devidamente isolados de grande parte da chamada música clássica. A obra a que me refiro chama-se Moskva, Tcherëmushki. Esta que tenho é a primeira gravação dela no Ocidente: o elenco inteiramente composto de cantores russos, e a Orquestra Residente da Haia, regida por Gennady Rozhdestvensky. Vários momentos destes CDs pareceram-me as versões definitivas – posso acreditar em versões iguais, mas não consigo imaginar melhores. A obra foi lançada no final dos anos 50 na CCCP, só chegou ao Ocidente nos últimos anos, como muito de Shostakovitch (o que explica ele ainda não ser tão considerado quanto devia); só foi executada em 94, pela Plimlico Opera de Londres. Algumas faixas destes dois CDs estão, sem exagero, entre as melhores coisas que já ouvi - e são totalmente diferentes de tudo que eu ouvira anteriormente de Shostakovitch. Talvez por se tratar duma comédia, o tom das melodias é muito menos sombrio que em sua obra sinfônica. O libretto me diz que Shostakovitch é antes de tudo um compositor dramático - "entre 1928, quando tinha 21 anos, e 1936, ele produziu uma série de músicas para teatro e cinema, duas óperas (O Nariz e Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk); três balés completos (A Era de Ouro, O Cadeado e O Límpido Riacho); música incidental para sete espetáculos teatrais; dois números para uma ópera do compositor alemão Dressel; a orquestração da overture de outra pessoa; o primeiro ato duma opereta depois abandonada (O Grande Raio); e nada menos que oito trilhas sonoras de filmes, incluindo o famoso Contraplano, sobre milagres industriais numa fábrica de turbinas em Leningrado)." Em 1936 o Pravda publicou a famosa reprovação que Stalin em pessoa supostamente fizera na estréia da ópera Lady Macbeth - "Bagunça em vez de música" foi a sutil manchete - a partir daí ele passou a dedicar-se mais a trabalhos instrumentais, onde possuía uma liberdade para criticar com quem sabe mais intensidade e ainda assim escapar dos censores, filisteus. Alguns esboços de Moskva, Tcherëmushki já estavam rabiscados, ainda como trechos de outras óperas que depois ele descartaria. Ao final da década de 50 a ascensão de Khrushtchëv, relativamente liberal se comparado ao seu antecessor Stalin e seu sucessor Brezhnev, permitiu um “criticismo” limitado, "construtivo", que D.S. aproveitou para voltar a dedicar-se à uma opereta. Não que ele houvesse abandonado a obra dramática - escreveu mais vinte e sete trilhas de filmes (!) - mas não encontrara durante estes vinte anos um libretto que lhe agradasse. O texto, de autoria de dois comediantes russos com aval do Estado, Vladimir Mass e Mikhail Tchervinsky, é uma sátira um tanto leve, pontuada de pequenos dramas casuais (telenovelescos, deixa a entender o encarte do CD), sobre um grupo de pessoas que serão remanejadas, num projeto qualquer da administração de Moscou, a um novo bloco residencial chamado Tcherëmushki, nos subúrbios da cidade; não bastasse o transtorno que tal situação poderia causar, eles ainda são atrapalhados, na burocracia que precede suas mudanças, pelos dois oficiais administradores da obra, inescrupulosos e mal-intencionados. Parece ter algum humor - um dos personagens principais, Aleksandr Petrovitch Bubentsov (Sasha), é descrito como "um moscovita feliz"; e diversas paródias deste otimismo oficial pipocam pelo texto - uma proeza naquele regime. Mas tudo isso que falei é facilmente dispensável - o que interessa é a música, de primeiríssima qualidade. O coro inicial, que segue a breve abertura, a ária de Bubentsov e o coro de visitantes, no museu, e a Pantomima são as melhores peças musicais compostas neste século, ouso afirmar num momento de claro arrebatamento. Talvez não haja nesta opereta o transtorno que há na célebre quinta sinfonia - ele avança noutra direção, completamente oposta... não sei me expressar suficientemente bem para discorrer sobre suas qualidades, mas de alguma maneira chego a pensar no Shostakovitch desta opereta em certos momentos epifânicos como o Mozart de nosso século. O Beethoven, o Bach e o Mozart do nosso século - ele apresenta características fortíssimas de todos eles, amalgamados num só genial compositor que ainda assim possui uma característica tão única de nossa época, de sua hedionda época e de seu mais terrível lugar. Mas ele permaneceu na URSS e, por isso mesmo, sua obra fez-se ainda mais forte. Obrigado, camarada.


Rafael Azevedo
São Paulo, 9/11/2001

 

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