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Terça-feira, 7/4/2009
Entre a crise e o espectro do humor a favor
Diogo Salles

Eu ainda não era nascido, mas me contaram que o início dos anos 70 foi a época do tal do "milagre econômico". Época em que faltava humor, mas sobrava ufanismo. Impulsionados pelo tricampeonato de 1970, os milicos lançaram mão da propaganda nacionalista para mover as massas e investiram maciçamente em bordões como "Brasil, ame-o ou deixe-o". Com taxas de crescimento superiores a 10% ao ano, o Brasil embarcava na farsa, enquanto os porões do DOI-CODI continuavam recebendo novos visitantes. Mas aí veio a crise do petróleo em 1973 e, ao enxertar os buracos dos "anos de chumbo" com o "milagre econômico", o país descobriu que o preço pela cegueira ufanista tinha sido alto. Altíssimo.

Em 1985, o Brasil era outro. Tancredo Neves chegava ao poder e trazia consigo uma nova esperança com a redemocratização. O clima de euforia era de tal maneira incontrolável que ninguém notou que tanto deslumbramento nos conduzia a um espectro bastante temerário: o espectro do humor a favor. Mas não haveria tempo para isso, pois Tancredo nem chegaria ao dia da posse. Sir Ney ficou encarregado em trazer as más notícias a "brasileiras e brasileiros". A conta do "milagre econômico" dos gorilas fardados tinha chegado ― e o Brasil não tinha dinheiro para pagar. Convulsionados por uma inflação estratosférica, passamos a década inteira jogados à sorte de constantes trocas de moeda e planos econômicos aventureiros.

Olhando hoje, aquela euforia se mostrava despropositada. Começando pelo próprio Tancredo, que só chegou ao poder através de um acordo tácito entre a ARENA e o PMDB. E depois porque seu governo não teria sido muito melhor do que foi o de Sir Ney. A verdade é que a redemocratização ainda engatinhava, e só começaria a andar de fato em 1989, com o voto. Ali, sim, éramos uma democracia e, com isso, o brasileiro se sentiu seguro para acreditar em salvadores da pátria. Outro dia, revi o último debate entre os candidatos de então, Collor e Lula, e uma questão voltou-me ao âmago. A certa altura, o jornalista Fernando Mitre indagou o candidato collorido, líder nas pesquisas, sobre uma reportagem que mostrava um brasileiro "humilde" decretando: "Collor vai mudar a nossa vida na primeira semana de governo". No fim, Collor fugiu da pergunta, ganhou a eleição e a resposta ao brasileiro "humilde" só viria muitas semanas depois, no primeiro impeachment de um presidente na história brasileira. Estaria aprendida a lição a todos os brasileiros (além do tal "humilde")? Ainda não.

Nos anos 90, o Brasil de FHC surfaria na onda do otimismo mais uma vez. Com a inflação finalmente controlada e o dólar "um para um", as perspectivas eram as melhores possíveis. Com a "moeda forte" o brasileiro tinha cacife para consumir mais frango e iogurte. A confiança era tanta que abriu-se uma brecha para mudar a regra do jogo enquanto ele ainda era jogado. Com as crises dos Tigres Asiáticos, em 1997, e da Rússia, em 1998, vacas e frangos ficariam magros novamente para o Brasil, mas não impediria a reeleição de FH e um segundo mandato um tanto "apagado". Ao mesmo tempo, nossa fauna política protagonizava episódios pitorescos e ganhavam as manchetes: Jader Barbalho contra ACM; Francisco Lopes a favor de Salvatore Cacciola... E ele, a maior caixa-preta da história recente do Brasil: Daniel Dantas.

Chegamos a 2002. Tempo das esperanças se renovarem para vencer o "medo". Com Lula lá, a ética finalmente definiria a agenda política. Quem acreditou nesse discurso deve ter se horrorizado com a esbórnia dos mensaleiros e com o cinismo (ou o silêncio) das antigas vestais petistas. Lula fingiu que não sabia de nada, o primeiro escalão do PT foi dizimado e o segundo escalão emergiu. Se o momento político era explosivo, a economia era um mar de águas cristalinas. O jeito era navegá-las rumo à reeleição, na canoa do Bolsa Família, que até mesmo Frei Betto acredita ser um instrumento eleitoral do projeto de poder do PT e de Lula.

O segundo mandato de Lula (notadamente o ano de 2008) reproduziu ― com tintas parecidas, mas com cores muito mais vibrantes ― a marola ufanista de FHC e transformou-a em tsunami. Lula foi às alturas e o espectro do humor a favor voltou a assombrar a terra do "nunca antes nesse país". Pronto, o mensalão já fazia parte do passado. Longe de sermos uma sumidade em saúde ou em educação, continuamos ostentando a 80ª colocação no ranking da corrupção, heroicamente atrás da Namíbia e do Suriname... Ah, mas a economia "tá bombando", deixa isso pra lá, diziam os arrivistas da ocasião. Será? Na dúvida, pedi uma tequila com pré-sal e deixei a patrulha bradando retumbantemente para as paredes. Afinal, o Brasil estava próximo à perfeição... Ou melhor, estava perfeito. Se melhorasse, estragava. Pois bem, não melhorou... E estragou. Se após um período de prosperidade sempre vem uma crise, o Brasil, inserido no mercado globalizado (queiram ou não), sofreria com ela.

Sim, a crise. Toda vez que ela nos circunda, os donos do poder sempre se prontificam a encontrar culpados (ah, como o brasileiro gosta de uma caça às bruxas!). Chega a ser ridículo o jeito que governo e oposição se comportam frente à crise atual. Se antes cada um reivindicava para si a paternidade (sem exame de DNA) de um Brasil próspero que nadava a braçadas rumo ao desenvolvimento, agora um empurra as mazelas da crise para o outro. Na bonança, os tucanos desfilavam em plumas com o controle da inflação e a estabilização da moeda. Agora apontam a incompetência e a ingerência do PT e de Lula pelo imobilismo. Já os petistas não vão muito além. Nos anos dourados, exaltavam a explosão do consumo e a facilidade do crédito pelo momento mágico que o Brasil viveu até ontem. Agora, culpam os brancos de olhos azuis, os EUA, a direita, a globalização, o imperialismo, o neoliberalismo, o capitalismo e todos os "ismos" pela fragilidade da nossa torre de babel.

Em meio a tanta aridez, cabe aqui uma constatação, que só não é óbvia aos ideólogos e seus acólitos. O capitalismo não está em xeque. É o neoliberalismo que viu o seu vinho virar vinagre. Aqui entre nós, era muita ingenuidade acreditar que os mercados se autorregulariam sozinhos, né não? Assim como é igualmente ingênuo acreditar que os corruptos estão apinhados somente no setor público. Pessoalmente, concordo com Ferreira Gullar, quando diz que o capitalismo é um fenômeno natural e amoral e que a melhor solução seria a "ganância do bem". Faça um favor a si mesmo: leia esse texto do Gullar e deixe os ideólogos lá, no século XX, discutindo sobre a "mão invisível" contra a "mão de ferro".

Mas se de um lado a crise econômica afasta o espectro do humor a favor, de outro ela ressuscita outro vício brasileiro, igualmente perverso: a crença em salvadores da pátria. A pergunta de Fernando Mitre, feita em 1989, poderia ser refeita hoje, já que, neste exato momento, tem muita gente por aí achando que só José Serra será a salvação para o Brasil. Outros acreditam que Lula já é a salvação (com Dilma Rousseff a tiracolo). Enquanto se acusam mutuamente de uso eleitoreiro das obras de infraestrutura, ambos fazem o uso descarado da máquina pública ― Serra, na do governo estadual; Lula/Dilma, na do federal.

Essa é maneira brazuca de encarar a crise econômica. Com chicanas políticas, interesses partidários, manobras eleitoreiras e retórica rasteira, sempre mirando a sucessão presidencial de 2010. De alguma forma, estas figuras tão ilustres hão de combater bravamente o desemprego, segurar as rédeas da inflação e liderar a cruzada das reformas que o Brasil tanto precisa e há décadas são prometidas (ironicamente por eles mesmos). Estranho ninguém falar de corrupção, de impunidade, de fisiologismo, do PMDB... Ah, quer saber? Vê aí mais uma tequila com bastante pré-sal... E não se fala mais nisso, ok?

Quer dizer que só tenho críticas a tudo o que aconteceu no Brasil? Essa é uma pergunta que me fazem com frequência e aproveito para respondê-la aqui: não. Evoluímos muito do ponto de vista econômico e social. Quem duvida, basta lembrar dos preços sendo remarcados todos os dias pela inflação dos anos 80/90. O Brasil virou o jogo. FHC começou, Lula continuou. Simples assim, porém incompreensível aos entusiastas da diatribe tucano-petista. Tanto o governo FHC quanto o de Lula mostraram que, bem ou mal, a economia brasileira continua andando, apesar de todos os bilhões jogados, ano a ano, no ralo da corrupção ― corrupção que, diga-se, sempre contou com a complacência de ambos. Se ontem a economia esteve bem e hoje ela vai mal, não é por causa do Lula, nem apesar do Lula. Muita coisa aconteceu para que chegássemos ao estágio atual e a economia se move muito mais pelas leis do temido e volátil "mercado globalizado" do que pela boa vontade do presidente (mesmo que seus índices de popularidade oscilem junto com os números do PIB).

O que falta ao Brasil é esquecer os proselitismos e encarar os problemas de frente. Sem demagogias, sem máscaras. É por isso que, por maior que seja a crise econômica de agora, nossa eterna crise será sempre política. Na economia de hoje, a crise pode ser vista por duas vias. De um lado, a preocupação com o emprego e com a renda. De outro, uma oportunidade para ensejar novos negócios em tempos difíceis. Se existe mesmo uma "ganância do bem", chegou o momento de testá-la. Por ora, continuamos esperando que a crise volte a ser só uma "marolinha". Porque senão, companheiro, nóis sifu...

Diogo Salles
São Paulo, 7/4/2009

 

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