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Sexta-feira, 24/4/2009
Simplesmente feliz
Marta Barcellos

A sensação pode durar segundos. Sim, tudo isso. Do nada, surge um sentimento de plenitude. Você está inteiro, se sente vivo e integrado àquele momento. Ao mesmo tempo, consegue contemplar a si próprio e ao mundo com certo distanciamento, como se estivesse em suspenso. Está cheio de si, mas sem o orgulho bobo das conquistas mundanas ― tanto que nem lhe ocorre exibir aquela emoção para ninguém. Você guarda em segredo: está feliz.

Aproveite a minha modesta tentativa de descrever o tal momento e desencave do fundo da memória o instante fugidio em que se sentiu assim. Passou, é verdade, e nem lembramos como foi. Provavelmente nos distraímos com uma buzina, uma interrupção qualquer, e nem tentamos guardar um resquício daquela emoção, como se tivesse sido um sonho. Não foi. Todos já nos sentimos assim e por isso andamos por aí como se a tal felicidade estivesse à espreita, alcançável por um lance de sorte, acaso ou destino ― a gosto do freguês e das convicções filosóficas.

Uma dessas ocasiões eu guardei bem na memória, porque a sensação veio junto com uma lufada de ar quente. Eu descia do avião no Santos Dumont, no Rio, antes dos abomináveis fingers de hoje. Tratava-se de uma rotina ― o tal instante de felicidade cisma de aparecer em situações banais. A lufada veio junto com o cheiro de maresia, e ainda era dia; talvez fosse horário de verão. Uma entrevista burocrática em São Paulo acabara se transformando em uma conversa instigante, e me ocorreu, naquela viagem de volta, a máxima: "e ainda me pagam pra isso".

Mas nem sempre a tal felicidade acontece em lugares tão glamourosos como um aeroporto à beira-mar. Já me flagrei flertando com ela ao dirigir meu carro, a caminho de um compromisso qualquer. Dá vontade de abrir o vidro e deixar o vento soprar no rosto. Também me recordo de uma pequena caminhada, de mãos dadas, sob os primeiros raios de sol da manhã, quando ainda morava em São Paulo e minha vida saía de uma fase tumultuada. E olha que não sou exatamente conhecida pelo bom humor matinal ― sempre tive dificuldades de compreender quem acorda cantarolando.

É mais fácil falar de bom humor ou otimismo do que de felicidade. Percebi isso depois de ver Simplesmente feliz (Happy-go-lucky), filme que não escolhi por acaso: a intenção era manter o alto astral, depois de um dia puxado ― uma atitude digna de Poppy, a personagem principal. Professora primária, 30 anos, sem namorado, Poppy tem sua bicicleta furtada logo no início da trama e não se abala. Poppy nunca se abala. Tem uma capacidade infinita de ver o lado bom das coisas e das pessoas. Vislumbra no incidente com a bicicleta uma oportunidade para aprender a dirigir. Na autoescola, vai conviver com um instrutor que é a sua antítese.

No finalzinho do filme (não vou revelar nada demais, pode continuar lendo), o raivoso instrutor solta uma frase que pode passar despercebida do público, por conta da tensão da cena. Sim, garante ele, era feliz do seu jeito, mal-humorado e negativo, antes que ela o incomodasse com sua felicidade efusiva. Fiquei chocada quando alguém ao meu lado também admitiu algum incômodo com a personagem, que lhe lembrou um tipo "alegre, artificial, que não leva nada a sério". Preferi me identificar com o time das bem-humoradas que se vangloriavam, na saída do cinema: "Igualzinha a mim". Mas depois pensei em alguém assobiando às 7h da matina e decidi relativizar a questão. Talvez não suportasse a Poppy antes das 10h.

O fato é que o conceito de felicidade ― como um estado, e não um instante ― é um tanto individual. Há quem simplesmente a rechace, por identificá-la com paz, harmonia e chatice. No documentário Vinicius, de Miguel Faria Jr., Edu Lobo conta a confusão que foi a tentativa de se traduzir uma letra de Vinicius de Moraes. Tom Jobim, então nos Estados Unidos, havia adorado os versos "Foi a vida / Foi o amor quem quis / É melhor viver / Do que ser feliz". Quis utilizá-los em inglês, mas, conversando com o tradutor, percebeu o tamanho de seu desafio. Diante da transposição literal dos versos ("Itīs better to live than be happy"), o tradutor se exaltou, convicto do erro de Jobim, que teria trocado "and" por "than". "Tom achou graça e comentou que o viver de Vinicius era completamente diferente do viver dos americanos", conta Edu no documentário.

Outro que também costuma defender por aí uma "vida interessante", em vez de uma "vida feliz", é o psicanalista Contardo Calligaris. Ou seja, a intensidade, em busca da tal felicidade, nos seria suficiente, talvez o máximo que deveríamos almejar. Eu tendo a concordar com Vinicius, Calligaris e companhia, mas acrescentaria que uma boa dose de humor e otimismo, à la Poppy, pode tornar a tarefa (viver) ainda mais agradável. Para fechar, dou a palavra a Ferreira Gullar, tintim por tintim, também no documentário Vinicius:

"Acho que a vida é uma invenção. Você pode inventar pro ruim ou inventar pro bom. Tenho horror a caras que ficam sempre pra baixo, falando da 'verdade sobre a existência'. Mentira, ninguém sabe qual é a verdade. Acho Beckett um chatola. Se você escolhe dizer que tudo é uma merda, que nada tem sentido, pode até ganhar o prêmio Nobel, mas não vai ajudar ninguém. Prefiro o cara que bota a vida pra cima. Já que ninguém sabe qual é a verdade, por que vou botar pra baixo?"

Vinicius de Moraes, conclui Gullar, ajuda a gente a viver. Daquele jeito, que os americanos não compreendem muito bem.

Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blog Espuminha de leite.

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 24/4/2009

 

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